sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Escola de Bem-te-vis

Muita gente já não acredita que existam pássaros, a não ser em gravuras ou empalhados nos museus - o que é perfeitamente natural, dado o novo aspecto da terra, que, em lugar de árvores, produz com mais abundância blocos de cimento armado. Mas ainda há pássaros, sim. Existem tantos em redor da minha casa, que até agora não tive (nem creio que venha a ter) tempo de saber seus nomes, conhecer suas cores, entender sua linguagem. Porque evidentemente os pássaros falam. Há muitos, muitos anos, no meu primeiro livro de inglês se lia: "Dizem que o sultão Mamude entendia a linguagem dos pássaros..."
Quando ouço um gorjeio nestas mangueiras e ciprestes, logo penso no sultão, e nessa linguagem que ele entendia. Fico atenta, mas não consigo traduzir nada. No entanto, bem sei que os pássaros estão conversando.
O papagaio e a arara, esses aprendem o que lhes ensinam, e falam como doutores. E há o bem-te-vi, que fala português de nascença, mas infelizmente só diz o seu próprio nome, decerto sem saber que assim se chama.
Anos e anos a fio, os bem-te-vis do meu bairro nascem, crescem, brigam falam... - depois deixam de ser ouvidos: não sei se caem nas panelas dos sibaritas, se arranjam emprego, se viajam, se tiram férias, se fazem turismo. Não sei.
Mas, enquanto andam por aqui, são pacientemente instruídos por seus pais ou professores, e parece que, tão cedo começam a voar, já vão para as aulas, ao contrário de muitas crianças que antes de irem para as aulas já estão voando.
Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas: a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos - ah! principalmente os gatos... Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só:"Bem-te-vi! Bem-te-vi",que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas.
Antigamente era assim. Agora, porém, as coisas tem mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: "Bem-te-vi!" - o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: "Te-vi!" Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. "Bem-te-vi! Bem-te-vi!", tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de "Te-vi! Te-vi! Te-vi", que deixou o próprio eco muito desconfiado.
Essa revolução durou algum tempo. A passarinhada vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos. "Bem-te-vi!", diziam estes, severos e puristas, tentando chamá-los à razão. "Te-vi! Te-vi!", gritavam os outros, galhofeiros, revoltosos, endoidecidos.
Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: "Bem-te-vi! Bem-te-vi!" - e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviam a abreviatura dos pais: "Te-vi!Te-vi!" Mas acharam muito comprido ainda. (Que tranbolho, a família) E passaram a responder, por muito favor, "Vi! Vi!" Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato...
"Bem-te-vi!", exclamam os anciãos, com sua dignidade ofendida. "Te-vi!", respondem os filhos revoltosos. E os netos, meio chochos: "Vi! Vi!"
Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudem de método. Talvez mude o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente - quem sabe? - uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis.


O que se diz e o que se entende: crônicas/ Cecília Meireles.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

A árvore - Geir Campos

Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?

Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?

Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências - que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos.

demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo,
E dize-me: há esperança para o homem?


A árvore/Geir Campos. In:Campos, Paulo Mendes(org.) Forma e expressão do soneto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1952.

Este texto foi publicado originalmente em: Campos,Geir. Rosa dos rumos. Rio de Janeiro: revista Literária, 1950.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Neste soneto - Paulo Mendes Campos

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma é pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

A palavra escrita/ Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro/ Hipocampo, 1951.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A planta - Ferreira Gullar

haverá mesmo tanta
diferença
entre mim e a planta
do vaso da sala?

Ao que se percebe
ela é verde
e não fala

Pode ser que ouvido
melhor que o meu
ouça-lhe a voz da seiva
a irrigar-lhe o caule

Ao contrário de mim
( forma pronta )
a planta
se multiplica em folhas
que ela
a cada dia puxa
de si
( do ventre )
como sabres
feito um jogador
a exibir seus naipes

Em alguma parte alguma/ Ferreira Gullar, [apresentação Alfredo Bosi e Antonio Secchin]. - 2ª ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

Inseto - Ferreira Gullar

Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelética

Também mais complexo
que uma hidrelética
é um poema
( menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
( o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida

Em alguma parte alguma/ Ferreira Gullar,[ apresentação Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin]. 2ª ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

Dois poetas na praia - Ferreira Gullar

É carnaval,
a terra treme:
um casal de poetas conversa
na praia do Leme!

Falam os dois de poesia
e dos banhistas
que nunca leram Drummond nem Mallarmé.
- E lerão meu poema?
pergunta ela.
- Alguém vai ler.
- Pois mesmo que não leia
não vou deixar de dizer
o que vejo nesta areia
que eles pisam sem ver.

E o poeta mais velho
sorri confortado:
a poesia está ali
renascida a seu lado.

Em alguma parte alguma/Ferreira Gullar,[apresentação Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin]. - 2ª ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

O que se foi - Ferreira Gullar

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

Em alguma parte alguma/ Ferreira Gullar; [apresentação Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin]. - 2ª ed.. - Rio de Janeiro: José Olympio,2010.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Aquele menino - 1 - Affonso Romano de Sant'Anna

Saudade de um eu
de que me dão notícia
como do irmão gêmeo
que se perdeu
ou de algo distante:
um primo ou conhecido
que usou um terno meu.

Me dizem
que conversaram com "ele"
ou "eu"
Há quem o tenha tocado
e dele ouvido frases de amor
e pasmo.

Viram-no descendo ruas do interior
pregando nas esquinas
desejando suas vizinhas
depois escalando árvores , edifícios, pirâmides
procurando algo que se perdeu
lendo hieroglifos
na biblioteca de Babel.

Outros o viram grave e irônico opinando
ou desatento olhando para o lado
de dentro
de insolúveis questões.
Para alguns parecia estar apressado
como se fosse buscar o futuro
ou inaugurar o passado.

Gostaria de rever esse menino
que dizem que fui eu.
Então o acolheria
incorporando-me ao que fui
e há muito se perdeu.

Enfim lhe pediria
aceite-me de volta
não sou teu pai
sou filho teu.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna.- Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Esse coração - Affonso Romano de Sant'Anna

Àa vezes, como agora
ouço bater-me o coração.
Mas em geral
nem lhe presto atenção.

Passo semanas, anos
sem me dar conta
como se essa fosse
dele a profissão.

Lateja independente de mim
meu coração
vivo tão longe dele
ele
pulsando lá por sua conta
eu seguindo minha vida
exceto
é claro
quando desencadeia-se
o amor-paixão.
Aí eu-sou-ele
ele-sou-eu
no mesmo desespero
e glorificação.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. - Rio de Janeiro: Rocco,2005.

Soneto sentimental à cidade de São Paulo - Vinícius de Moraes

Ó cidade tão lírica e tão fria!
Mercenária, que importa - basta! - importa
Que à noite, quando te repousas morta
Lenta e cruel te envolve uma agonia

Não te amo à luz plácida do dia
Amo-te quando a neblina te trasporta
Nesse momento, amante, abres-me a porta
E eu te possuo nua e fugidia.

Sinto como a tua íris fosforeja
Entre um poema, um riso e uma cerveja
E que mal há se o lar onde se espera

Traz saudade de alguma Baviera
Se a poesia é tua, e em cada mesa
Há um pecador morrendo de beleza?

Jardim noturno: poemas inéditos/Vinícius de Moraes; organização e seleção Ana Miranda - São Paulo: Companhia das letras, 1993.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos - Vinicius de Moraes

Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.

Jardim Noturno: poemas inéditos/ Vinicius de Moraes; organização e seleção Ana Miranda - São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Amor - Vinicius de Moraes

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros,amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita,vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos,amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N.S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.


Jardim noturno: poemas inéditos/ Vinicius de Moraes; organização e seleção
Ana Miranda - São Paulo: Companhia das Letras, 1993