sábado, 29 de dezembro de 2012

Toda a ciência está aqui - Eugenio de Andrade

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.


Andrade, Eugênio de. Rente ao dizer. Fundação Eugênio de Andrade, 1992.

Ao fim da tarde - Eugenio de Andrade

Ninguém esperava ver o mar naquele dia
mas era o mar
que estava alí à porta naqueles olhos.


Andrade, Eugenio de. Poemas de Eugenio de Andrade. Org. por Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Ofício - Gastão Cruz

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pode a poesia nunca dar-lhe.

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe.

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e ás vezes não respira.

Cruz, Gastão. "As palavras e as coisas". In:____. Escarpas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010.

Por mais duro que pareça - Silva, Luis Roberto Nascimento

Por mais duro que pareça agora
isso tudo passará.
A tempestade irá embora.

As nuvens pesadas se dissiparão.
Poderemos olhar o céu,
sol poente; novamente.

Guardaremos a lição:
para cada azul cintilante
brilhando sob nossas cabeças

existe igual noite de trevas
mosaico invertido
grafite da escuridão.


Silva, Luis Roberto Nascimento. O alfabeto da devassa. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Eu tenho um ermo - Manoel de Barros

Eu tenho um ermo bem dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato / Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.