domingo, 22 de julho de 2012

Ser - Carlos Drummond de Andrade

O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te

como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987.
Claro enigma/ Carlos Drummond de Andrade;
São Paulo: Companhia das letras, 2012.

Amar - Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.



Andrade, Carlos Drummond, 1902-1987.
Claro enigma/ Carlos Drummond de Andrade-São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Tanto mais eu te contemplo - Affonso Romano de Sant'Anna

Tanto mais eu te contemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio.

Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
nos meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?

Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?
Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.

E à força, de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,

pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.


Sant'Anna, Affonso Romano, 1937-
Poesia reunida: 1965-1999 / Affonso Romano de Sant'Anna.- Porto Alegre: L&PM, 2004.

A voz de Deus - Fernando Pessoa

"Com dia teço a noite,
Com noite escrevo o dia...
Ó Universo, eu sou-te!"
(Sombra de luz na bruma fria,
Que é este archote?
Que mão o tem e o guia?)

"Não me chamo o meu nome...
Sou de ti, mundo-não,
Ser mente em ti eu sou-me!"
(De quem esta voz-clarão?
D'O que tem por cognome
O ser da imensidão)


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917 / Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Dobre - Fernando Pessoa

Peguei no meu coração E pu-lo na minha mão.

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine.- São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Caminho - Adonis

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã
o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço
amortecem meus passos, avivam meu sangue.

Não iniciei a trilha, ainda
não vejo nenhum jazigo
caminho até mim mesmo, até
meu próximo amanhã
caminho e atrás de mim caminham as estrelas.


ADONIS. Poemas. Organização e tradução de Michel Sleiman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

domingo, 8 de julho de 2012

Destino do poeta - Octavio Paz

Palavras? Sim, de ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.

Também a luz em si mesma se perde.


Paz, Octavio; Campos, Haroldo. Transblanco ( em torno a Blanco de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

Ontologia - Alex Varella

Existem o mar e o sol.

E além disso,

também existem o sol e o mar do poema.



Varella, Alex. Céu em cima/Mar embaixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Tristeza - Fernando Pessoa

Falo-me em versos tristes,
Entrego-me a versos cheios
De névoa e de luar;
E esses meus versos tristes
São ténues, céleres veios
Que esse vago luar
Se deixa pratear.

Sou alma em tristes cantos,
Tão tristes como as águas
Que uma castelã vê
Perderem-se em recantos
Que ela em soslaio, de pé,
No seu castelo de prantos
Perenemente vê...
Assim as minhas mágoas não domo
Cantam-me não sei como
E eu canto-as não sei porquê.



Pessoa, Fernando,1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa; ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine.-São Paulo: Companhia das Letras, 2006.