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domingo, 25 de novembro de 2012

Cantiga - Cecília Meireles

Nós somos como perfume
da flor que não tinha vindo:
esperança do silêncio,
quando o mundo está dormindo.

Pareceu que ouve o perfume...
E a flor sem vir , se acabou.
Oh! abelha imaginativa!
o que o desejo inventou...



Meireles, Cecília , 1901-1964
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queirós. - 1ª ed.- São Paulo: Moderna, 2005.-

Canção - Cecília Meireles

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol foram limpos
e houver festa pelo mar
- ir-te-ei visitar.

Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor
- ir-te ei ver, amor.

Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.

Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.


Meireles, Cecília,1901-1964.
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queirós- 1ª ed.- São Paulo: Moderna, 2005.-

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Criança - Cecília Meireles

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Meireles, Cecília, 1901-1964
As palavras voam/ antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queiros-1ªed. - São Paulo: Moderna,2005. -  

sábado, 3 de dezembro de 2011

Todas as coisas tem nome - Cecília Meireles

Todas as coisas têm nome.
(Tem nome todas as coisas?)

Todos os verbos são atos.
(São atos todos os verbos?)

Com a gramática e o dicionário
faremos nossos pequenos exercícios.

Mas quando lermos em voz alta o que escrevemos,
não saberão se era prosa ou verso,
e perguntarão o que se há de fazer com esses escritos:

porque existe um som de voz,
e um eco - e um horizonte de pedra
e uma floresta de rumores e água

que modificam os nomes e os verbos
e tudo não é somente léxico e sintaxe.

Assim tenho visto.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organização Fabricio Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Escola de Bem-te-vis

Muita gente já não acredita que existam pássaros, a não ser em gravuras ou empalhados nos museus - o que é perfeitamente natural, dado o novo aspecto da terra, que, em lugar de árvores, produz com mais abundância blocos de cimento armado. Mas ainda há pássaros, sim. Existem tantos em redor da minha casa, que até agora não tive (nem creio que venha a ter) tempo de saber seus nomes, conhecer suas cores, entender sua linguagem. Porque evidentemente os pássaros falam. Há muitos, muitos anos, no meu primeiro livro de inglês se lia: "Dizem que o sultão Mamude entendia a linguagem dos pássaros..."
Quando ouço um gorjeio nestas mangueiras e ciprestes, logo penso no sultão, e nessa linguagem que ele entendia. Fico atenta, mas não consigo traduzir nada. No entanto, bem sei que os pássaros estão conversando.
O papagaio e a arara, esses aprendem o que lhes ensinam, e falam como doutores. E há o bem-te-vi, que fala português de nascença, mas infelizmente só diz o seu próprio nome, decerto sem saber que assim se chama.
Anos e anos a fio, os bem-te-vis do meu bairro nascem, crescem, brigam falam... - depois deixam de ser ouvidos: não sei se caem nas panelas dos sibaritas, se arranjam emprego, se viajam, se tiram férias, se fazem turismo. Não sei.
Mas, enquanto andam por aqui, são pacientemente instruídos por seus pais ou professores, e parece que, tão cedo começam a voar, já vão para as aulas, ao contrário de muitas crianças que antes de irem para as aulas já estão voando.
Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas: a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos - ah! principalmente os gatos... Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só:"Bem-te-vi! Bem-te-vi",que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas.
Antigamente era assim. Agora, porém, as coisas tem mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: "Bem-te-vi!" - o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: "Te-vi!" Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. "Bem-te-vi! Bem-te-vi!", tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de "Te-vi! Te-vi! Te-vi", que deixou o próprio eco muito desconfiado.
Essa revolução durou algum tempo. A passarinhada vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos. "Bem-te-vi!", diziam estes, severos e puristas, tentando chamá-los à razão. "Te-vi! Te-vi!", gritavam os outros, galhofeiros, revoltosos, endoidecidos.
Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: "Bem-te-vi! Bem-te-vi!" - e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviam a abreviatura dos pais: "Te-vi!Te-vi!" Mas acharam muito comprido ainda. (Que tranbolho, a família) E passaram a responder, por muito favor, "Vi! Vi!" Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato...
"Bem-te-vi!", exclamam os anciãos, com sua dignidade ofendida. "Te-vi!", respondem os filhos revoltosos. E os netos, meio chochos: "Vi! Vi!"
Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudem de método. Talvez mude o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente - quem sabe? - uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis.


O que se diz e o que se entende: crônicas/ Cecília Meireles.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Interpretação - Cecília Meireles

As palavras aí estão, uma por uma:
porém minha alma sabe mais.

De muito inverossímil se perfuma
o lábio fatigado de ais.

Falai! que estou distante e distraída,
Com meu tédio sem voz.

Falai! meu mundo é feito de outra vida.
Talvez nós não sejamos nós.

domingo, 11 de abril de 2010

Epigrama - Cecília Meireles

Narciso, foste caluniado pelos homens,
por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor,
a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso.

Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda:
sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava
gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,

a estátua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava,
florindo para sempre, com o seu efêmero sorriso...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Canção de alta noite - Cecília Meireles

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.
Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.
Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.
Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar...-enquanto consente
Deus que seja a noite andada.
Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Cântico II- Não sejas o de hoje... - Cecília Meireles

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Lua adversa - Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fase de vir para a rua...
Perdição da minha vida
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Vôo - Cecília Meireles

Alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras
como águias imensas.
Como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.

Oh! alto e baixo
em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós
as palavras voam.

E às vezes pousam.

Anatomia - Cecília Meireles

É triste ver-se o homem por dentro:
tudo arrumado, cerrado, dobrado
como objetos num armário.

A alma , não.

É triste ver-se o mapa das veias,
e esse pequeno mar que faz trabalhar seus rios
como por obscuras aldeias
indo e vindo, a carregar vida, estranhos escravos.

Mas a alma?

É triste ver-se a elétrica floresta
dos nervos: para estrelas de olhos e lágrimas,
para a inquieta brisa da voz,
para esses ninhos contorcidos do pensamento.

E a alma?

É triste ver-se que de repente se imobiliza
esse sistema de enigmas,
de inexplicado exercício,
antes de termos encontrado a alma.

Pela alma choramos.
Procuramos a alma.
Queríamos alma.

Canção quase melancólica - Cecília Meireles

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...

Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.

Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?

Quando vierem fechar os meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

História de uma letra - Cecília Meireles

Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.
A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham  um idioma.
Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas  que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil.
Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc...
As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de talento, de prestígio - e o povo classifica essa situação, que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.
O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção.
Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais.
Penetrando mais no estudo de todas essas supertições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem as mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas consequências ocultas.
Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental - que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais.
E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos,com todas as suas inesperadas trajetórias.
E há os que lêem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fìgado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela...
Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada.Não compreendo por que as pessoas crêem numas coisas e noutras não. Tudo é crível. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.
Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca, chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar.
Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta, pus-me a procurá-la.
Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos que justificassem a conspiração que se fazia contra mim.
Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido, nem vestido marrom nem gato preto nem número fatídico na porta.
E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido - e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas luzes é pela timidez em não acreditarem o momento propício - passei a analisar o meu nome.
Esqueci de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.
Foi nessa ocasião que me  explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos.
Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.
Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo.
Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra.
Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado.
Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ou sem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade.
Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome.
Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos.
Quanto as coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: "Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?" Não,as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa...
Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: " Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te  durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me...Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas ... Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome...
Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus"
Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim, - mas, um parente, um amigo extraordinário.
A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar.
E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

De que são feitos os dias? - Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
 - De pequenos  desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias,
 - do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em  duros desenlaces
e em sinistras alianças...

Lua adversa - Cecília Meireles

Tenho fases como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vem,
no secreto calendário
que um astrólogo  arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua....)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia ,
o outro desapareceu...

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Essa história de Papai Noel... - Cecília Meireles

Todas as crianças amanheceram ontem preocupadas com o que iam encontrar nos sapatos. E, como todos sabem, apesar de a data celebrar o nascimento de um dos grandes defensores da igualdade humana, os resultados verificados na prova prática dos sapatos foram os mais desiguais possível.
Não é isso que vamos pretender resolver aqui, embora acreditemos que a obra da educação tem horizontes infinitos, e esse é um dos problemas que ela está incumbida de pôr nos devidos termos.
Vamos considerar apenas essa história do Papai Noel, personagem maravilhoso que entra invisível   no quarto das crianças para lhes pôr presentes nos sapatos.
Se estudarmos o caso, como recomenda Piaget, na sua verificação das representações infantis, acompanhando e favorecendo a revelação desejada sem a sugerir, para não a viciar, observaremos que as crianças não possuem conceito definido acerca do personagem fabuloso da noite de Natal. À alegria turbulenta e absorvente dos brinquedos a receber, ou recebidos, associam apenas a imagem convencional do velho friorento, de roupa vermelha orlada de arminho, barba branca, saco às costas, que as revistas e os jornais reproduzem, e a família mostra nos anúncios, sorrindo com malícia da inocência dos pequeninos.
Eu creio que o território da imaginação infantil tem uma localização à parte, nas suas faculdades. Está isento de consequências práticas, como se as imaginárias estivessem previamente a salvo de interferências da realidade e do contato com elas. Assim, as histórias maravilhosas parece-me que se acumulam, junto com os sonhos e as visões indefinidas da criança, uma região isolada da sua vida interior, não são absorvidas do mesmo modo que os fatos concretos; referem-se a interesses de outra espécie e não correspondem a uma atividade exterior. Por isso, também, é que, através do meu convívio com as crianças, inclino-me a supor que a ficção do Papai Noel é, para a infância , de natureza vaga e imprecisa, como que diluída numa generalização, e dissipada facilmente pela realidade nítida dos brinquedos. As crianças até cinco ou seis anos não tem preocupação da existência desse personagem, aceitam-no como um nome, uma palavra, - como os nomes dos meses e dos dias.
Avanço isto com a máxima precaução: e gostaria que mães e professoras procurassem interpretar bem a noção de seus filhos e alunos, a esse respeito.
Mas, depois dos seis anos, nos dias de hoje, dificilmente uma criança acredita no personagem misterioso do Natal. E, quando as assalta a primeira dúvida, correm ao papai e à mamãe para lhes perguntarem a verdade. Aí é que se comete o erro lamentável. Porque todos os pais estão convencidos - e com as melhores intenções - de que fazem bem à criança dizendo-lhes que existe esse homem sobrenatural. Muitos, eu bem sei que já não querem dizer a verdade porque tem pena de arrancar da criança o que eles supõem ser uma deliciosa ilusão, uma autêntica forma de felicidade - quando nunca se detiveram a analisar como é que funciona a alma infantil e a repercussão interior dessas coisas!
Outros sustentam a ficção  com alegria, certos de que estão agindo muito normalmente, como todo o mundo faz...(O conforto da rotina...)
Dá-se, então, o seguinte: ou dizem a verdade à criança, ou ela malgrado o segredo, adivinha-a. Mas, de qualquer das duas maneiras, a criança compreende subitamente: que se pode dizer a alguém uma coisa que não é verdadeira...Que se pode alimentar essa falsidade anos a fio, repetidas vezes, com gravidade e convicção...Que os pais, os parentes, os amigos mais íntimos e mais queridos, isto é, todos aqueles em que ela confia, a quem se abandona, com a sua inocência e a sua pureza são os mesmos que sustentam essas coisas mentirosas...
Essa é que é a grande desilusão das crianças no dia que descobrem a invenção do Papai Noel...Não é a tristeza de perderem uma coisa maravilhosa...E, aliás, há coisas realmente maravilhosas, insondáveis, que se podem dar à criança, se a questão é de coisas sutis... - o movimento dos mundos, a fecundidade da terra, as origens da vida, as cores, todas as leis físicas.
O desencanto, o mudo desencanto dos olhos das crianças que sabem da verdade do Papai Noel é a amargura do contato com os homens, uma presciência da deformação da vida, uma tristeza de ter sido assunto de mofa...Uma consciência de humilhação, e um sentimento de desconfiança...Esse é o ruim presente que os pais colocam nos sapatinhos dos filhos...

(Rio de Janeiro, Diário de Notícias,26 de Dezembro de 1930) 

sábado, 7 de novembro de 2009

Canção - Cecília Meireles


Ó flores do verde pino,

sempre é tempo de esperar!

Mas nós temos a certeza

de que aquilo que esperamos

não se acha em nenhum lugar...


Não tem raízes nem ramos,

não é do céu nem do mar.

Não tem nome - é só destino.

E é toda a nossa estranheza,

sabendo-o tanto , esperar...

Canção de Outono - Cecília Meireles


Perdoa-me, folha seca,

não posso cuidar de ti.

Vim para amar neste mundo,

e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores

pelas areias do chão,

se havia gente dormindo

sobre o próprio coração?


E não pude levantá-la!

Choro pelo que não fiz.

E pela minha fraqueza

é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!

Meus olhos sem força estão

velando e rogando àqueles

que não se levantarão...


Tu és a folha de outono

voante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade

- a melhor parte de mim.

E vou por este caminho,

certa de que tudo é vão.

Que tudo é menos que o vento,

menos que as folhas do chão...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Há um nome que nos estremece - Cecília Meireles

Há um nome que nos estremece

como quando se corta a flor

e a árvore se torce e padece



Há um nome que alguém pronuncia

sem qualquer alegria ou dor,

e que, em nós, é dor e alegria.



Um nome que brilha e que passa,

que nos corta em puro esplendor,

que nos deixa em cinza e desgraça.



Nele se acaba a nossa vida,

porque é o nome total do amor

em forma obscura e dolorida.



Há um nome levado no vento.

Palavra.Pequeno rumor

entre a eternidade e o momento.