segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Trechos de Clarice Lispector

Quero Carlos Drummond de Andrade voz de Paulo Autran

Em nós a pressa mora - Rainer Maria Rilke

Em nós a pressa mora.
Mas do tempo ao passar
tal bagatela ignora,
entre o que tem vagar!

Tudo que corre agora
em breve há de acabar:
só o que custa a demora
nos pode consagrar.

Jovem, procura e ousa
- não a velocidade,
o voo tentador...

não, pois tudo repousa
no Eterno: claridade
e sombra, livro e flor.

A solteirona - Rainer Maria Rilke

Leve, como após a morte,
as luvas e o lenço toma.
Da cômoda, um cheiro forte
suplanta o dileto aroma

tão próprio, de antigamente.
Já vaidosa não indaga
( a algum remoto parente):
- Que tal? - e em sonhos divaga

na alcova, que assim bonita
conserva e trata e aprimora:
porque certamente a habita
a mesma moça de outrora.

O duplo - Ferreira Gullar

Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu

e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto

mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco

Registro - Ferreira Gullar

À janela
de meu apartamento
à rua Duvivier 49
(sistema solar, planeta Terra,
Via Láctea)
limpo as unhas da mão
por volta das quatro e quarenta da tarde
do dia 2 de dezembro de 2008
enquanto
na galáxia M 31
a 2 milhóes e 200 mil anos-luz de distância
extingue-se uma estrela

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Cada qual - Affonso Romano de Sant'Anna

Cada amor é outro
recomeço. Para alguns
tropeço.

Cada corpo é um princípio,
para alguns a porta
do precipício.

Cada vida penetrada
é um edifício, entrada
que pode dar
numa cidade de mil portas
ou, então, em nada.

Meu cão - Affonso Romano de Sant'Anna

Meu cão ouve comigo
o adágio da 6º Sinfonia de Beethoven.
Gosta de música meu cão.

Deitado no tapete
ele respira no ritmo sonoro da orquestra
apascenta-se e chega a dormir ao som dos violinos.

O adágio continua.
Agora
foi uma borboleta que veio ouvir Beethoven
pousando na vidraça.

O cão, a borboleta e eu,
enquanto ao longe, na montanha, uma nuvem
se desfaz
com a imponderável melodia.

Se estivesses aqui - Affonso Romano de Sant'Anna

Se estivesses aqui
eu não estaria usando esse pronome "tu", tão solene.
Tomaria teu/seu corpo intimamente
e saberia olhar o mundo pela primeira vez
se estivesses aqui.

Na tua ausência
olho o que inutilmente expõe-se
nas vitrinas-museus-flores-detalhes de pessoas nos cafés.

Eu teria tantos olhos
se estivesses aqui.

Faltam-me
tua alma de prata e teu olhar de jade,
aquele olhar
- que me susteve
na escura noite da traição.

Palavras e paisagens - Affonso Romano de Sant'Anna

Há certas palavras pelas quais passo frequentemente
sem lhes conhecer o sentido verdadeiro.

Nunca fui ao dicionário
conhecer as formas polifacéticas de seu ser.

São como pessoas que por mim passam
ou que frequentam nossa paisagem.
Não nos aprofundamos em conhecê-las.
Basta o colorido de suas vestes
e a sonoridade de seus nomes.

Não se pode esgotar o dicionário
ou amar completamente
- tudo o que encontramos.

Iluminando - Affonso Romano de Sant'Anna

Que fulgurante a vida face ao entardecer.
Desfolho seus momentos numa verticalidade absurda.

Os gregos amavam o Sol
e os decadentistas lunares formas de viver.
Projeto uns nos outros
iluminando o escurecer.

A tarde tem sortilégios.

Estou maduro para ela.

Escrevo. Escrevo. Escrevo.
E algo se grava e se esclarece
no ato de escreviver.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poemas para a amiga - 1 - Affonso Romano de Sant'Anna

Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.

Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.

Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.

Por isto é que eu sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém-vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.

As vezes em que eu mais te amei - Affonso Romano de Sant'Anna

As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.

Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava
e em mim te possuía.

De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias.

Contudo, em paz
eu recebia o teu carinho,
compungido o recebia,
tranquilo em meu silêncio
e tão tranquilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.

Eu sei quando te amo - Affonso Romano de Sant'Anna

Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.

Eu sei quando te amo:
é quando eu apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim,
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A exceção e a regra - Bertolt Brecht

Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam
de que o abuso é sempre a regra.

As águas do rio - Bertolt Brecht

Por mais que olhes o rio
que corre pesadamente diante de ti,
nunca verás as mesmas águas.
Nunca regressa a água que passa.
Nem uma só gota
volta à sua nascente.

A bondade - Bertolt Brecht

Não fazer mal a ninguém, nem tampouco, a si mesmo.
Tornar todo mundo feliz e a si mesmo também.
Eis a bondade.

Palavras de uma mulher apaixonada - Bertolt Brecht

Quero partir com o homem que amo.
Não quero pensar no que este amor custará.
Não quero perguntar-me se ajo insensatamente.
Não quero saber tampouco se ele me ama.
Quero partir com o homem que amo.

Entendimento - Bertolt Brecht

Por que brigamos
amor,
se sempre na cama
estamos de acordo?

Poesia do exílio - Bertolt Brecht

Nos tempos sombrios
se cantará também?
Também se cantará
sobre os tempos sombrios.

Nada é impossível de mudar - Bertolt Brecht

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

Uma voz - Bertolt Brecht

De todo o jardim
uma rosa nos agradou.
Como era formosa em seu florescimento!
Em março a plantaram
e não foi em vão.
Ditoso os que tem um jardim
e no jardim uma rosa!

Quando sopram os ventos e cai a neve
e, através da janela, ouvimo-los silvar
que nos pode acontecer?
Fizemos o nosso teto
e o cobrimos de musgo e de palha.
Ditosos os que podem ter um teto
quando se ouve silvar os ventos e cair a neve.

domingo, 22 de agosto de 2010

A poesia - Pablo Neruda

A poesia é sempre um ato de paz.
O poeta nasce da paz como o pão
nasce da farinha.

Quando estive pela primeira vez defronte do oceano - Pablo Neruda

Quando estive pela primeira vez
defronte do oceano me enchi de assombro.
Ali entre dois grandes montes
(o Huique e o Maule) se desatava
a fúria do grande mar.
Não eram somente as imensas ondas
nevadas que se levantavam
a muitos metros sobre nossas cabeças,
mas um estrondo de coração colossal,
a palpitação do universo.

Já não se encantarão meus olhos - Pablo Neruda

Já não se encantarão meus olhos em teus olhos,
já não se achará doce minha dor a teu lado.

Mas por onde eu caminhe levarei teu olhar
e para onde tu fores levarás minha dor.

Fui teu, foste minha. Que mais? Juntos fizemos
um desvio na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás de quem te ame,
do que corte em teu horto aquilo que eu plantei.

Eu me vou. Estou triste: mas eu sempre estou triste.
Eu venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

...Desde teu coração diz adeus um menino.
E eu lhe digo adeus.

Para o meu coração basta o teu peito - Pablo Neruda

Para o meu coração basta o teu peito,
para que sejas livre, as minhas asas.
De minha boca chegará até o céu
o que dormido estava em tua alma.

Tu trazes a ilusão de cada dia.
Chegas como o orvalho nas corolas.
Com tua ausência escavas o horizonte.
Eternamente em fuga, irmã das ondas.

Já disse que o teu canto era o do vento
como cantam os mastros e os pinheiros.
És como eles alta e taciturna.
E entristeces de pronto, como uma viagem.

Acolhedora como antiga senda.
Abrigas ecos e vozes nostálgicas.
Desperto e alguma vez emigram, fogem
pássaros dormidos em tua alma.

sábado, 21 de agosto de 2010

Canção para a amiga dormindo - Vinicius de Moraes

Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.

Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e , me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.

Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.
Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
Na minha poesia
De um sono sem fim...

Amor meu, se morro e tu não morres - Pablo neruda

Amor meu, se morro e tu não morres,
amor meu, se morres e não morro,
não demos à dor mais território:
não há extensão como a que vivemos.

Pó no trigo, areia nas areias,
o tempo, a água errante, o vento vago
nos transportou como grão navegante.
Podemos não nos encontrar no tempo.

Esta campina em que nos achamos,
oh pequeno infinito! devolvemos.
Mas este amor, amor, não terminou,

e assim como não teve nascimento
morte não tem, é como um longo rio,
só muda de terras e de lábios.

É bom, amor, sentir-te perto de mim - Pablo Neruda

É bom, amor, sentir-te perto de mim na noite,
invisível em teu sonho, seriamente noturna,
enquanto eu desenrolo minhas preocupações
como se fossem redes confundidas.

Ausente, pelos sonhos teu coração navega,
mas teu corpo assim abandonado respira
buscando-me sem ver-me, completando meu sonho
como uma planta que se duplica na sombra.

Erguida, serás outra que viverá amanhã,
mas das fronteiras perdidas na noite,
deste ser e não ser em que nos encontramos

algo fica acercando-nos na luz da vida
como se o selo da sombra assinalasse
com fogo suas secretas criaturas.

Se não fosse porque tem cor-de-lua teus olhos - Pablo Neruda

Se não fosse porque tem cor-de-lua teus olhos,
de dia com argila, com trabalho, com fogo,
e aprisionada tens a agilidade do ar,
se não fosse porque uma semana és de âmbar.

se não fosse porque és o momento amarelo
em que o outono sobe pelas trepadeiras
e és ainda o pão que a lua fragrante
elabora passeando sua farinha pelo céu,

oh, bem-amada, eu não te amaria!
Em teu abraço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo, a árvore da chuva,

e tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso ver tudo:
vejo em tua vida todo o vivente.

Amo o pedaço de terra que tu és - Pablo Neruda

Amo o pedaço de terra que tu és,
porque das campinas planetárias
outra estrela não tenho. Tu repetes
a multiplicação do universo.

Teus amplos olhos são a luz que tenho
as constelações derrotadas,
tua pele palpita como os caminhos
que percorre na chuva o meteoro.

De tanta lua foram para mim teus quadris,
de todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
de tanta luz ardente como mel na sombra

teu coração queimado por longos raios rubros,
e assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
pequena e planetária, pomba e geografia.

O amor e seus contratos - Carlos Drummond de Andrade

Tanto nas juras mais vivas
como nos beijos mais longos
em que perduram salivas
de outras paixões ainda ativas,
sopro de angolas e congos,
eu sinto a turva incerteza
(ai, ouro de tredas lavras)
da enovelada surpresa
que põe tanto de estranheza
nos contratos que tu lavras.

Por mais que no teu falar
brilhe a promessa incessante
de um afeto a perdurar
até o mundo acabar
e mesmo depois - diamante
de mil prismas incendidos,
amarga-me o pensamento
de serem pactos fingidos
e nos seus subentendidos
não vi, Amor, valimento.

Experiências de escrituras,
eu tenho. De que me serve?
Após sofridas leituras
de ementas e de rasuras,
no peito a dúvida ferve,
se nos mais doutos cartórios
de Londres, Londrina, Lavras
para assuntos amatórios,
teus itens são ilusórios,
só palavras e palavras.

As nulidades tamanhas
que te invalidam o trato
não sei se provém de manhas
ou de vistas mais estranhas.
Serão talvez teu retrato
gravado em vento ou em sonho
como aéreo documento
que nunca mais recompomho.
São todas - digo tristonho -
feitas de sonho e de vento.

O seu santo nome - Carlos Drummond de Andrade

Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão(e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

O pleno e o vazio - Carlos Drummond de Andrade

Oh se me lembro e quanto.
E se não me lembrasse?
Outra seria minh'alma,
bem diversa minha face.

Oh como esqueço e quanto.
E se não me esquecesse?
Seria homem-espanto,
ambulando sem cabeça.

Oh como esqueço e lembro,
como lembro e esqueço
em correntezas iguais
e simultâneos enlaces.
Mas como posso, no fim,
recompor os meus disfarces?

Que caixa esquisita guarda
em mim sua névoa e cinza,
seu patrimônio de chamas,
enquanto a vida confere
seu limite, a cada hora
é uma hora devida
no balanço da memória
que chora e que ri, partida?

Ternura - Vinicius de Moraes

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora.

Soneto de Carnaval - Vinicius de Moraes

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

Exercício - Clarice Lispector

É curiosa esta experiência de escrever mais leve e para muitos, eu que escrevia "minhas coisas" para poucos. Está sendo agradável a sensação. Aliás, tenho me convivido muito ultimamente e descobri com surpresa que sou suportável, às vezes até agradável de ser. Bem. Nem sempre.

Escrever as entrelinhas - Clarice Lispector

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.

A doce canção - Cecília Meireles

Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve, no chão, criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.

Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto.
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
-Todos perdidos de encanto,
só eu morrendo de triste!

Por isso tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não o aumente,
para trazer o universo
de pólo a pólo contente!

Carta - Carlos Drummond de Andrade

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Soneto-Nada ficou em mim - Augusto Frederico Schmidt

Nada ficou em mim do tempo extinto:
As tristezas de outrora, as inquietas esperas,
Fugiram com a alvorada que surgia
Nos plúmbeos céus, escuros, sufocados.

Nada ficou em mim do velho tempo:
As paisagens que eu vi, os seres, tudo
Mergulhou no esquecido mar sem termo,
Onde o silêncio é a lei única e certa.

Bem sei que o Amor de outrora é também sombra.
Bem sei que a luz de um sol que é a própria vida
Não virá nunca mais salvar das trevas

O que se foi e em poeira está mudado.
Bem sei que as vozes que ouço e esse perfume
Que sinto, do passado - é sonho apenas.

Momento - Augusto Frederico Schmidt

Desejo de não ser um herói e nem poeta
Desejo de não ser senão feliz e calmo.
Desejo das volúpias castas e sem sombra
Dos fins de jantar nas casas burguesas.

Desejo manso das moringas de água fresca
Das flores eternas nos vasos verdes.
Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes
Desejo de vestidos de linho azul da esposa amada.

Oh! não as tentaculares investidas para o alto
E o tédio das cidades sacrificadas.
Desejo de integração no cotidiano.

Desejo de passar em silêncio, sem brilho
E desaparecer em Deus - com pouco sofrimento
E com a ternura dos que a vida não maltratou.

Canto do regresso à Pátria - Oswald de Andrade

Minha terra tem palmares
Onde gorgeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

Quando eu morrer - Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paiçandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos.
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Saudade...

Essa que eu hei de amar - Guilherme de Almeida

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia,
será tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer luz e calor a esta alma escura e fria.

E, quando ela passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de acordar no coração, que vela...
E ele irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz... - Tudo isso eu me dizia,

quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,
e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste...

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,
mas ias tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Basta saberes que és feliz - Raul de Leôni Ramos

Basta saberes que és feliz, e então
Já o serás na verdade muito menos;
Na árvore amarga da meditação,
A sombra é triste e os frutos tem venenos.

Se és feliz e o não sabes, tens na mão
O mais bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.

Felicidade...Sombra que só vejo,
Longe do Pensamento e do Desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo.

Nessa tranquilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo...

Medo do infinito - Emiliano Perneta

Sobre a montanha estava em certo dia,
Era quase ao morrer do sol...defronte,
Dos lados, aos meus olhos se estendia
A vastidão do lúgubre horizonte.

Infinito aos meus pés, tremendo, eu via,
Infinito por sobre a minha fronte,
E a Verdade a fugir-me à luz sombria,
À pavorosa luz do sol poente...

Súbito um medo veio-me...esmagado
Até quase à loucura deslumbrado,
Fico, imóvel, suspenso, aflito, aflito...

Que não há medo que enlouqueça tanto,
Como a indizível contorção de espanto,
O extraodinário Medo do infinito!

Não é só te querer... - Emiliano Perneta

Não é só, não é só te querer, porém tudo
Que é teu, ó girassol girando sobre mim,
Com sorrisos onde há seduções de veludo,
Atrações de luar e vozes dum jardim...

Sonho que me faz mal, tortura onde me iludo,
Cruel inquietação, ânsia que não tem fim,
Ó delírio de ver palácios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim!

Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,
Graça do que findou, essência e flor da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...

Quem me dera beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céu,
Desse Ródano Azul, dessa Floresta Negra!

Velho tema - Vicente de Carvalho

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim; mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Sonhei que me esperavas - Olavo Bilac

Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
Saí, ansioso por te ver: corria...
E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
Soube logo o lugar para onde ia.

E tudo me falou, tudo! Escutando
Meus passos, através da ramaria,
Dos despertados pássaros o bando:
"Vai mais depressa! Parabéns" dizia.

Disse o luar: "Espera! que eu te sigo:
Quero também beijar as faces dela!"
E disse o aroma: "Vai, que eu vou contigo!"

E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
"Como és feliz! como és feliz, amigo,
Que de tão perto vais ouvi-la e vê-la!"

Em mim também, que descuidado vistes - Olavo bilac

Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outrora vistes.

Mas amastes, sem dúvida...Portanto,
Meditai nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.

Quem ama inventa as penas em que vive:
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.

Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando.

Arte poética - Adília Lopes

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer.

Para fazer um soneto - Carlos Pena Filho

Para fazer um soneto

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo, Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse;
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão e vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O lamento das coisas - Augusto dos Anjos

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transparência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

Canção - João Cabral de Melo Neto

Demorada demoradamente
nenhuma voz me falou.
Eu vi o espectro do rei
não sei em que porta ele entrou.
Meus sofrimentos cumpridos
que sono os arrebatou?
Mas por detrás da cortina
que gesto meu se apagou?

É mineral o papel - João Cabral de Melo Neto

É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Epígrafe - Mario Quintana

As únicas coisas eternas são as nuvens...

Noturno - Mario Quintana

Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que
[fazem os caminhos...

Em Deus, em ti, de novo...
Tua ternura tão simples...
Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela
[noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto junto
[de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um
[arroio!
Os grilos cantarão na treva...
Fora, na grama fria, devem estar brilhando as gotas
[pequeninas do orvalho.

Da Realidade - Mario Quintana

O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! quanta vez a vida nos revela
Que "a saudade da amada criatura"
É bem melhor do que a presença dela...

É a mesma a ruazinha sossegada - Mario Quintana

É a mesma a ruazinha sossegada.
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - Alegria - Risos
Depois do Circo já ter ido embora!...

Eu faço versos como os saltimbancos - Mario Quintana

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

"Meu Deus1 Mas tu não mudas o programa!"
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
"Que tédio!" o coro dos Amigos clama.

"Mas que vos dar de novo e de imprevisto?"
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
"Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!"

Ideias rosas - Murilo Mendes

Minhas ideias abstratas,
De tanto as tocar, tornaram-se concretas:
São rosas familiares
Que o tempo traz ao alcance da mão,
Rosas que assistem à inauguração de eras novas
No meu pensamento,
No pensamento do mundo em mim e nos outros;
De eras novas, mas ainda assim
Que o tempo conheceu, conhece e conhecerá.
Rosas! Rosas!
Quem me dera que houvesse
Rosas abstratas para mim.

Enigma do amor - Murilo Mendes

Olho-te fixamente para que permaneças em mim.
Toda esta ternura é feita de elementos opostos
Que eu concilio na síntese da poesia.

O conhecimento que tenho de ti
É um dos meus complexos castigos.
Adivinho através do véu que te cobre
O canto de amor sufocado,
O choque ante a palavra divina, a antecipação da morte.
Minha nostalgia do infinito cresce
Na razão direita do afastamento em que estou do teu corpo.

Vem amiga - Jorge de Lima

Vem amiga; darte-ei a tua ceia
e a comida que acaso desejares,
e algum poema que ilumine os ares
menos que a luz malsã dessa candeia.

Aqui terás o peixe desses mares
e o mais gostoso mel de toda a aldeia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia?

Como te chamas vida da outra vida,
espelho noutro espelho transmudado,
lume na minha luz anoitecida?

Serás o dia à noite do outro lado
de meu ser que nas trevas se apagou?
Ou serás qualquer lume que não sou?

Qualquer que seja a chuva - Jorge de Lima

Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

domingo, 15 de agosto de 2010

Há uma orquídea florindo - Albano Martins

Há uma orquídea
florindo - teu
sorriso. Alegre
emanação da terra, folha
do vento, súplice
auréola do sangue, doce
colina e anêmona
do mar.

Cruzeiro Seixas: os dedos filtram a sombra - Albano martins

Entre o real e o sonho,
o sonho do real,
a realidade do sonho.

Entre a luz e a parede
oblíqua, os dedos
filtram a sombra estagnada.

Entre o disforme e o informe,
a forma
solenemente exata.

Abarco todo o horizonte - Albano Martins

Abarco todo o horizonte.
Dentro de mim há só água,
água estagnada, dos charcos
represos da minha mágoa.

Tenho tudo nos meus olhos,
as cores todas, e ponho
um leve acento de angústia
nas margens tristes do sonho.

Dentro de mim só há sombra.
O que possa acontecer
vai rasgando espaços brancos
nas fronteiras do meu ser.

Basta uma flor - Albano Martins

Basta uma flor,
basta uma asa
para saber que a primavera
entrou em nossa casa.

O ritmo do universo - Albano Martins

O ritmo
do universo
cabe,
inteiro,
na pupila
dum verso.

Não forces a tua inspiração - Albano Martins

Não forces a tua inspiração.
Deixa a poesia vir naturalmente
e não obrigues a mentir o coração.

Procura ser espontâneo,
A verdadeira beleza
está no que o homem tem de semelhante
com a natureza.

Meus versos - Albano martins

Meus versos, gritos do vento nas ramagens,
são a minha própria alma angustiada
a refletir imagens
duma lenda, em mim iniciada.

São a ternura destas mãos que escrevem
desatinadas palavras de ansiedade.
Meus versos são a voz da minha voz, a margem
que há entre o sonho e a realidade.

Meus versos
são encontros da sombra com a luz.
São perfis irregulares, talhados
na emoção que os revela e os traduz.

Meus versos
são distâncias várias dum único caminho.
Pássaros que abandonaram
o calor e o âmbito do ninho.

Inscrição - Sofia de Melo Breyner Andresen

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal - Sofia de Melo Breyner Andresen

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.

Soneto à Maneira de Camões - Sofia de Melo Breyner Andresen

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá se não por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Rumor - Eugênio de Andrade

Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.

A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.

Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.

Mas não pode voar.

Green god - Eugênio de Andrade

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar,

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.

Epitáfio - Eugênio de Andrade

Barcos ou não
ardem na tarde

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde!

Os frutos - Eugênio de Andrade

Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.

Somos folhas breves - Eugênio de Andrade

Somos folhas breves onde dormem
aves de silêncio e solidão.
Somos só folhas ou o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Cantas. E fica a vida suspensa. - Eugênio de Andrade

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

Metamorfose - Jorge de Sena

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se refletem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter...
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.

Independência - Jorge de Sena

Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
a às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!

Eu - Florbela Espanca

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada...a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvanecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Segue o teu destino - Fernando Pessoa

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver Só.
grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como o ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Quando meu rosto contemplo - Cecília Meireles

Quando meu rosto contemplo,
o espelho se despedaça:
por ver como passa o tempo
e o meu desgosto não passa.

Amargo campo da vida,
quem te semeou com dureza,
que os que não se matam de ira
morrem de pura tristeza?

Cantiguinha - Cecília Meireles

Brota esta lágrima e cai.
Vem de mim, mas não é minha.
Percebe-se que caminha,
sem que se saiba aonde vai.

Parece angústia espremida
de meu negro coração,
- pelos meus olhos fugida
e quebrada em minha mão.

Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.

Inscrição - Cecília Meireles

Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar.
Por que havemos de ser unicamente humanos,
limitados em chorar?

Não encontro caminhos
fáceis de andar
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.

E por isso levito.
É bom deixar
um pouco de ternura e encanto indiferente
de herança, em cada lugar.

Rastro de flor e estrela,
nuvem e mar.
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:
a sombra é que vai devagar.

Interpretação - Cecília Meireles

As palavras aí estão, uma por uma:
porém minha alma sabe mais.

De muito inverossímil se perfuma
o lábio fatigado de ais.

Falai! que estou distante e distraída,
Com meu tédio sem voz.

Falai! meu mundo é feito de outra vida.
Talvez nós não sejamos nós.

Só quem Amor não venceu o amor conhece - Augusto Frederico Schmidt

Só quem Amor não venceu o amor conhece.
Só quem nas trevas vive e se alimenta
Da esperança de luz que é a luz suprema.
Só quem aspira a um bem e o não alcança,

Sabe o valor do objeto desejado
Cujo prestígio e preço não se altera
E resiste ao destino das terrestres
Coisas que, em se as tocando, se desfazem.

Força é sofrer prisão para ser livre,
E, por Ventura ter, da Desventura
Os passos ter seguido sem descanso.

Força é achar na renúncia a posse plena -
Nos caminhos da Noite a luz da Aurora
E no seio da Morte a própria Vida.

Não quero mais o amor - Augusto Frederico Schmidt

Não quero mais o amor,
Nem mais quero cantar a minha terra.
Me perco neste mundo.
Não quero mais o Brasil
Não quero mais geografia
Nem pitoresco.

Quero é perder-me no mundo
Para fugir do mundo.
As estradas são largas
As estradas se estendem
Me falta é coragem de caminhar.

Sou uma confissão fraca
Sou uma confissão triste
Quem compreenderá meu coração?

O silêncio noturno me embala.
Nem grito. Nem sou.
Não quero me apegar nunca mais
Não quero nunca mais.

Verdade - Carlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

A hora do cansaço - Carlos Drummond de Andrade

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Aspiração - Carlos Drummond de Andrade

Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?

O absoluto amor,
revel à condição de carne e alma.

Ausência - Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Venturosa de sonhar-te - Cecília Meireles

Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

-Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvens sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.

- Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

De longe te hei de amar - Cecília Meireles

De longe te hei de amar,
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.

Para onde é que vão os versos - Cecília Meireles

Para onde é que vão os versos
que às vezes passam por mim
como pássaros libertos?

Deixo-os passar sem captura,
vejo-os seguirem pelo ar
- um outro ar, de outros jardins...

Aonde irão? A que criaturas
se destinam, que os alcançam
para os possuir e amestrar?

De onde vêm? Quem os projeta
como translúcidas setas?
E eu, por que os deixo passar,

como alheias esperanças?

Dizei-me com poucas palavras - Cecília Meireles

Dizei-me com poucas palavras
aquilo que vos atormenta;
que são pressurosas e bravas
as águas do meu pensamento.

O profundo soluço é breve;
a morte é um relâmpago apenas,
Não deixeis qu se alongue a febre
instantânea a da vossa pena.

Dizei com tanta justa eloquência
que haja um círculo, um campo, um halo,
que se veja, em pleno silêncio,
no que dizeis, o que se cala.

Falai de Deus com a clareza - Cecília Meireles

Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza;
com um poder

de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não o entender.

Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.

Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.

Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor

à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo
superior.

Com a voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus

que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Pastora descrida - Cecília Meireles

Eu, pastora, que apascento
estrelas da madrugada
pelas campinas do vento.

fui falar ao eco antigo,
a cuja voz fui criada,
e que supus meu amigo.

"Sou sempre a de antigamente",
murmurei-lhe, enternecida.
E ele anunciou longe: "Mente!"

Mas era a minha verdade
e, vendo-me assim descrida,
padeci com a falsidade.

"Eco amigo, eu não te iludo:
pastora sou destes prados
onde se confunde tudo:

mas sou de ontem e de agora,
dentro dos despedaçados
instantes de nenhuma hora...

A amargura não me aumentes..."
E o eco antigo, infiel e exato,
repetiu-me perto: "Mentes..."

Vergada em móveis espelhos,
vi nas águas meu retrato,
chorei sobre mim, de joelhos.

Mas o gado que pascia
pelas colinas da aurora,
mascando as margens do dia,

veio a mim sem que o esperasse,
lambeu-me os olhos de outrora,
- reconheceu a minha face.

A flor e o ar - Cecília Meireles

A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito;
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame,
não tenho mão para flor:
Pergunto, ao pensar no amor,
como é possível que se ame.

Arame e seda, percorro
o fio do tempo liso.
E nem sei do que preciso,
de tão depressa que morro.

Neste destino a que vim,
tudo é longe, tudo é alheio.
Pulsa o coração no meio
só para marcar o fim.

Sugestão - Cecília Meireles

Sede assim - qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Desventura - Cecília Meireles

Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu,só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segredo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, - e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.

Aceitação - Cecília Meireles

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus
passos.
É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas
do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de
cantar.

Conveniência - Cecília Meireles

Convém que o sonho tenha margem de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio.

Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais...
E por esse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados, tontamente...

Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei:"Que bom! nem é preciso respirar!..."

Discurso - Cecília Meireles

E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Soneto da fiel infância - Ribeiro Couto

Tudo que em mim foi natural - pobreza,
Mágoas de infância só, casa vazia,
Lutos, e pouco pão na pouca mesa -
Dói na saudade mais que então doía.

Da lamparina do meu quarto, acesa
No pequeno oratório noite e dia,
Vinha-me a sensação de uma riqueza
Que no meu sangue de menino ardia.

Altas horas, rezando no seu canto,
Minha mãe muitas vezes soluçava
E dava-me a beijar não sei que santo.

Meu Deus! Mais do que o santo que eu beijava,
Faz-me falta o cair daquele pranto
com que ela junto ao peito me molhava.

Rotação - Cassiano Ricardo

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança

a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança

a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera

Relógio de pêndulo - Cassiano Ricardo

Nada melhor do que um relógio antigo
pra quem cultive a graça das demoras.
Um relógio que, por absurdo e ambíguo
marque mais os outroras que os agoras.

Um monstro tardo, não obstante assíduo,
que acuse mais os anos do que as horas.
E mais viva atrasado no castigo
que a me indagar na pressa: por que choras?

O que mandei comprar a um velho avaro
é assim - memória no desassossego.
Gorjeia às vezes mais do que um canário.

Relógio sub-reptício que (morcego)
chupa o meu sangue mas, em cada brecha,
as asas dos ponteiros abre e fecha...

Desejo - Cassiano Ricardo

As coisas que não conseguem morrer
só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
o meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
que morreram no primeiro entardecer.

Ser deus - e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas -
é não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
entre as coisas que são, e as nebulosas,
que não conseguem dormir nem morrer.

Soneto inglês nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

Soneto VIII - Guilherme de Almeida

Por que confiado estou dos fingimentos
de mores bens e de menores danos,
se o de que vive amor são desenganos,
se o de que morre são contentamentos?
Ah! que tomar pudera aos meus tormentos
que em outro tempo tive por tiranos!
Que hoje é dias, semanas, meses, anos,
séc'los aquilo que era só momentos.
E vejo a vida assim tão mal devida
ao mal d'amor que tanto bem lhe deve
e lhe paga co duro desfavor.
Por que viver d'amor e amar a vida,
se para o bem amar a vida é breve,
se para o bem viver é breve o amor?

Eu em ti, tu em mim, minha querida - Guilherme de Almeida

Eu em ti, tu em mim, minha querida,
nós dois passamos despreocupados,
como passa, de leve, pela vida,
um parzinho feliz de namorados.

E assim vou, e assim vais. E assim,unida
à minha a tua mão, de braços dados,
assim nós vamos, como quem duvida
que haja, no mundo, tantos desgraçados.

Um dia, para nós - não sei... quem sabe? -
é bem possível que tudo isto acabe,
que sejas mais feliz, que fique louco...

Mas nunca percas, nunca mais, de vista
aquele moço sentimentalista
que te quis muito e a quem quiseste um pouco!

Balada do solitário - Guilherme de Almeida

Edifiquei certo castelo
por uma esplêndida manhã:
brincava o sol, quente e amarelo,
numa alegria incauta e sã.
E eu quis fazer, ó louco anelo!
desse palácio encantador
o ninho rico, mas singelo,
do teu, do meu, do nosso amor.

Por isso, em vez do som do duelo
tinindo em luta heróica e vã,
fiz soluçar um "ritornello"
em cada ameia ou barbacã...
Depois, tomando o camartelo,
alto esculpi, dominador,
esse brasão suntuoso e belo
do teu, do meu, do nosso amor.

De que serviu? se elo por elo
dessa paixão de alma pagã
rompeste a golpes de cutelo,
ó minha loira castelã?
Hoje estou só, sozinho, e velo
por este imenso corredor
que corre, corre paralelo
ao teu, ao meu, ao nosso amor.

OFERTÓRIO

A ti, Princesa, eu te revelo
esta canção, que um trovador
virá cantar pelo castelo
do teu, do meu, do nosso amor!

domingo, 8 de agosto de 2010

Destino - Almeida Garrett

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta - "Floresce!"
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não mo disse ninguém.

Como a abelha corre o prado,
Como no céu gira a estrela
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

Barca bela - Almeida Garrett

Pescador da barca bela,
Onde vás pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!

Anúncio classificado - Carlos Drummond de Andrade

Procura-se apartamento
pequeno, bem situado,
onde caibam dois amantes
de frente como de lado.

Quer-se bem perto do mar
e bem longe do barulho,
de modo que a única música
ouvida seja a de Bach,

de Corrette, de Bomporti,
com seus preciosos discos
arrumados de tal sorte
que inda caibam uns livros

de poesia, é claro,
e também (toda uma estante)
os tratados de Epicuro,
Descartes, Spinoza, Kant.

A mesa-de-cabeceira
deve ficar a seu cômodo
para que nenhuma aresta
machuque o amor na testa.

E a cama, sem ser estreita,
nem larga como avenida,
tenha espaço suficiente
para as doçuras da vida.

Caibam na pequena copa
a bandeja, o biscoitinho,
hoje guardados no armário
dos alvos lençóis de linho,

bem como aquelas garrafas
do escocês nacional
que a gente, faute de mieux,
ingere e não nos faz mal.

Procura-se apartamento
de quarto-e-sala (tão pouco
e tão muito), sem barata,
sem mosquito rezinguento,

sem vizinhos enervantes
que gritem palavras sujas,
sem terríveis, sem constantes
cortes d'água quando as nuas

formas já ensaboadas
se restauravam, cuidando
de logo após se enroscarem
nas formas do amor, amando.

Quem souber de tal imóvel
não fique imóvel: na asa
do vento me informe onde,
onde é que fica essa casa!

Receita para não engordar sem necessidade de ingerir arroz integral e chá de jasmim - Carlos Drummond de Andrade

Pratique o amor integral
uma vez por dia
desde a aurora matinal
até a hora em que o mocho espia.

Não perca um minuto só
neste regime sensacional.
Pois a vida é um sonho e, se tudo é pó,
que seja pó de amor integral.

A companheira - Carlos Drummond de Andrade

A companheira
da vida inteira,
que a meu lado
une o passado
ao novo dia
em harmonia,
a sempre forte
e meu suporte
quando vacilo,
porte tranquilo,
voz de carinho
no meu caminho,
leal, paciente
constantemente,
simples, discreta
força do poeta,
quero-a no instante
final - constante
com sua mão
acarinhando
em gesto brando
meu coração.

Versos de fim de ano - Carlos Drummond de Andrade

Você sabia que a lua
ainda não foi visitada?
Que há sempre uma lua nova
dentro da outra , e encantada?

É lá que vivem as graças
que nesta quadra do ano
a gente sonha e deseja
a todo o gênero humano.

Mas a lua, preguiçosa,
nem sempre atende à pedida?
A gente pede assim mesmo
até melhorar a vida.

Procuro uma alegria - Carlos Drummond de Andrade

Procuro uma alegria
na mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano-
o vôo de um pássaro
e de uma canção

Flui a vida como água - Carlos Drummond de Andrade

Flui a vida como água,
como água se renova.
Se a vida me foge, afago-a
em cada esperança nova.

A máquina do tempo - Carlos Drummond de Andrade

A máquina do tempo nos tritura?
Ao mesmo tempo cria imagens novas.
Renascemos em cada criatura
que nos traz do infinito as boas novas.

Amanhecer - Carlos Drummond de Andrade

Amanhecer: o mais antigo
sinal de vida sobre a terra.
Amanhecer: ainda o mais novo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer e vida humana
se entrelaçam na mesma luz.

Restituo estas chaves - Carlos Drummond de Andrade

Restituo estas chaves
à dona do chaveiro
como se fossem aves
livres de cativeiro.

Com certeza adivinhas
essa manobra arteira
prendê-las junto às minhas
e sequestrar-te inteira.

Que fiques boa depressa - Carlos Drummond de Andrade

Que fiques boa depressa
de alergia ou qualquer dor,
mas que nunca sares dessa
doença de amar-me, Amor!

Ferido de amor e morte - Manoel de Barros

Ferido de amor e morte
Ando à procura de paz.
Cadê teu rosto de brumas,
Para meu sonho desabado?

Meus pés de urzes e barcos,
Magoei-os pelos caminhos.
Soprem ventos do oceano
Sobre as flores e os espinhos...

Casa entre grades e rosas
Com portão de ferro arqueado.
- Sonhe o menino perdido
Com seus ombros desabados.

sábado, 7 de agosto de 2010

Singular, tão singular - Manoel de Barros

Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas
espaçosas
Imaginando a feição ideal dentro de cada uma!
Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...
Chegar ao fim sem saber que passou
Tranquilo como as casas,
Cheio de aroma como os jardins,
Desaparecer.
Não contar nada a ninguém.
Não tentar um poema.
Nem olhar o nome na placa.
Esquecer.
Invisível, deixar apenas que a emoção perdure
Fique na nossa vida fresca e incompreensível
Um mistério suave alisando para sempre o coração.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Os bens do poeta - Manoel de Barros

Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado primaveril.

Ausência - Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei...tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos.
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

A ausente - Vinícius de Moraes

Amiga, infinitivamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...

Mar - Vinícius de Moraes

Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.

Olhos parados (trecho) - Manoel de barros

Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso,
exclamar.
Como tudo é tão belo e cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.

Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve.
A beleza que a gente vê saindo das rosas; a dor saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.

Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver no tempo.
Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar os bigodes,
Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que passara
num bar, que ouvira uma mazurca,
E agora estava ali, muito perdidamente lembrando coisas bobas de sua pequena vida.

Pedido quase uma prece (trecho) - Manoel de Barros

Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa
Com janelas de aurora e árvores no quintal -
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
E ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos
pescadores.
O que desejo é apenas uma casa. Em verdade,
Não é necessário que seja azul, nem que tenha cortinas de
rendas.
Em verdade, nem é necessário que tenha cortinas.
Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.

Sem nome, porém honrada, Senhor. Só não dispenso a
árvore,
Porque é a mais bela coisa que nos destes e a menos amarga.
Quero de minha janela sentir os ventos pelos caminhos,
e ver o sol.
Dourando os cabelos negros e os olhos de minha amada.

Também a minha amada não dispenso, meu Senhor.
Em verdade ela é a parte mais importante deste poema.
Em verdade vos digo, e bastante constrangido,
Que sem ela a casa também eu não queria, e voltava pra
pensão.

Que rosa esplendente é o amor! - Manoel de Barros

Que rosa esplendente é o amor!
Que maravilha adorar!

Tenho certeza que ando perdida
E que o Senhor me perdoará.

Que fazer com o rosto de amora
No instante dele chegar?

Meus olhos negros de sonhos
Minha boca de beijar?

(No campo as árvores dormem
Banhadas em luz de luar...)

Meu corpo pra que me serve
Senão pra desabrochar
Entre as colinas noturnas
Na hora dele chegar?

São mil coisas impressentidas - Manoel se Barros

São mil coisas impressentidas
Que me escutam:
O movimento das folhas
O silêncio de onde acabas de voltar
E a luz que divide o corpo do nascente

São mil coisas impressentidas
Que me escutam:
São os pássaros assustados, assustados,
Tuas mãos que descobrem o convite da terra
E os poemas como ilhas submersas...

São mil coisas impressentidas
Que me escutam:
Sou eu apreensivamente
Solicitado pela inflorescência
Redescoberto pelo bulir das folhas...

Olhar para alguma coisa - Susan Sontag

Olhar para alguma coisa "vazia" é ainda olhar, ver alguma coisa - mesmo que seja só os fantasmas de nossas próprias expectativas.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Retrato do artista quando jovem (trechos) - James Joyce

Vou te dizer o que farei e o que não farei. Não servirei àquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja; e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e sutileza.

-Fizeste que eu confessasse os pavores que tenho. Mas vou te dizer também o que não me apavora. Não tenho medo de estar sozinho, de ser desdenhado por quem quer que seja, nem de deixar seja lá o que for que eu tenha que deixar. E não tenho medo, tampouco, de cometer um erro, um erro que dure toda a vida e talvez tanto quanto a própria eternidade mesma.

Retrato do artista quando jovem(trecho) - James Joyce

Onde estava, agora, a sua infância? Onde estava a alma que recuara suspensa do seu destino, para avaliar sozinha a vergonha de suas feridas e para em sua morada de sordidez e de subterfúgio governar por entre velhas mortalhas e grinaldas que murchavam ao menor contato? Ou onde estava ele?
Ele estava longe de tudo e de todos, sozinho. Ele estava desligado de tudo, feliz, rente ao coração selvagem da vida. Estava sozinho, e era jovem, cheio de vontade, e tinha um coração selvagem; estava sozinho no meio dum ermo de ar bravio, entre águas salobras, entre a colheita marítima de conchas, entre emaranhados e redemoinhos, entre claridades embaçadas de cinzento, entre figuras de crianças, e de raparigas vestidas de alegria, e de luz, entre vozes infantis e joviais que enchiam o ar.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A comunicação muda - Clarice Lispector

O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros.
Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão.

O que é angústia - Clarice Lispector

Um rapaz fez-me essa pergunta difícil de ser respondida. Pois depende do angustiado. Para alguns incautos, inclusive, é palavra que se orgulham de pronunciar como se com ela subissem de categoria - o que também é uma forma de angústia.
Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o que realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia - e a fuga é outra angústia. Mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai.
Esse mesmo rapaz perguntou-me: você não acha que há um vazio sinistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o coração entenda.

Enquanto vocês dormem - Clarice Lispector

Se vocês soubessem como esta noite está diferente. São três horas da madrugada, estou com uma de minhas insônias. Tomei uma xícara de café, já que não ia dormir mesmo. Botei açúcar demais, e o café ficou horrível. Ouço o barulho das ondas do mar se quebrando na praia. Esta noite está diferente porque, enquanto vocês dormem, estou conversando com vocês. Interrompo, vou ao terraço, olho a rua e a nesga de praia e o mar. Está escuro. Tão escuro. Penso em pessoas de quem eu gosto: estão todas dormindo ou se divertindo. É possível que algumas estejam tomando uísque. Meu café se transforma em mais adocicado ainda, em mais impossível ainda. E a escuridão se torna tão maior. Estou caindo numa tristeza sem dor. Não é mau. Faz parte. Amanhã provavelmente terei alguma alegria, também sem grandes êxtases, só alegria, e isto também não é mau. É, mas não estou gostando muito deste pacto com a mediocridade de viver.

Que nome dar à esperança - Clarice Lispector

Mas se através de tudo corre a esperança, então a coisa é atingida. No entanto a esperança não é para amanhã. A esperança é este instante. Precisa-se dar outro nome a certo tipo de esperança porque esta palavra significa sobretudo espera. E a esperança é já. Deve haver uma palavra que signifique o que quero dizer.

Epitáfio para meu silêncio - Paulo Bonfim

Que teu sorriso
Seja pássaro
Ardendo plumas
Sobre meu silêncio

E teus olhos
Inventem nuvens
Chovendo deuses
Sobre meu silêncio

Que tuas mãos
Carícias
Plantem despedidas
Sobre meu silêncio
E tuas palavras
Fiquem sempre verdes
Machucando sombras
Sobre meu silêncio.

Soneto l - Paulo Bonfim

No ramo a flor será sempre segredo
Moldando realidades no vazio,
Caminho de perfume, rosa e estio,
Crescendo além dos roseirais do medo.

História das raízes sem enredo...
Rolam frases de terra pelo rio,
As consoantes de luz tremem de frio
E as vogais orvalhadas morrem de medo.

No ramo a flor será sempre futuro,
Haste e corola nos confins do sonho,
Marcando de infinito a cor do muro...

Sempre a cor sobre a senda debruçada,
E o perfume crescendo onde reponho
O sentido da flor despetalada.

domingo, 1 de agosto de 2010

Reinvenção - Cecília Meireles

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Narrativa - Cecília Meireles

Andei buscando esse dia
pelos humildes caminhos
onde se escondem as coisas
que trazem felicidade:
os amuletos dos grilos
e os trevos de quatro folhas...
Só achei flor de saudade.

O arroio levava o tempo.
Ia meu sonho atrás da água.
No chão dormiam abertas
minhas duas mãos sem nada.
Se me chamavam de longe,
se me chamavam de perto,
era perdida a chamada...

Viajei pelas estrelas,
dentro da rosa-dos-ventos.
Trouxe prata em meus cabelos,
pólen da noite sombria...
Mirei no meu coração,
vi os outros, vi meu sonho,
encontrei o que queria.

Já não mais desejo andanças;
tenho meu campo sereno,
com aquela felicidade
que em toda parte buscava.
O tempo fez-me paciente.
A lua, triste, mas doce.
O mar, profunda, erma e brava.

Desenho - Cecília Meireles

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.

Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.