sexta-feira, 29 de julho de 2011

Confidência do itabirano - Carlos Drummond de Andrade

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...



Moriconi,Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva,2001.

"Há uma rosa caída" - Maria Ângela Alvim

Há uma rosa caída
Morta
Há uma rosa caída
Bela
Há uma rosa caída
Rosa



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador).
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Quando eu morrer quero ficar - Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paiçandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça.
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade.

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há-de-vir,
O joelho na Universidade,
Saudade.

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra( de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.



Moriconi,Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Com licença poética - Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
Acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.



Moriconi,Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador).
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

domingo, 24 de julho de 2011

Sintonia para pressa e presságio - Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do movimento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Nadador - Cecília Meireles

O que me encanta é a linha alada
das tuas espáduas, e a curva
que descreves, pássaro da água!

É a tua fina, ágil cintura,
e eese adeus da tua garganta
para cemitérios de espuma!

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda, rápida e branda.

E apenas por estar prevendo,
longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento...



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador)
- Rio de Janeiro: Objetiva,2001.

Emergência - Mario Quintana

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador0
- Rio de Janeiro:Objetiva,2001.

No descomeço era o verbo - Manoel de Barros

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.



Moriconi, Italo ( organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/ Italo Moriconi(organizador).
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O futuro - Fernando Pessoa (por Álvaro de Campos)

Sei que me espera qualquer coisa
Mas não sei que coisa me espera.

Como um quarto escuro
Que eu temo quando creio que nada temo
Mas só o temo, por ele, temo em vão.
Não é uma presença: é um frio e um medo.
O mistério da morte a mim o liga
Ao brutal fim do meu poema.



Pessoa, Fernando,1888-1935.
Poesia/ Álvaro de Campos: edição Teresa Rita Lopes.
-São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

A liberdade, sim, a liberdade! - Fernando Pessoa ( por Álvaro de Campos)

A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância qu rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo sério...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?



Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/Álvaro de Campos: edição Teresa Rita Lopes.-
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Poema de canção sobre a esperança - Fernando Pessoa (por Álvaro de Campos)

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios -
Os melhores lírios -
E as melhores rosas
Sem receber nada,
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ Álvaro de Campos; edição Teresa Rita Lopes -
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Quietude - Luis Carlos de Menezes

Alma que quer sossego
não se move por bens
nem saber nem virtude

Basta a quietude


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial,2009

O poema - Moacyr Félix

Ou se vive por inteiro
ou pela metade a gente
escreve a vida
que não viveu.

E o papel em branco então serve
como serve ao prisioneiro
a parede branca do cárcere.

O que não foi é o ser que é
no poema, esse ato mágico
de uma chama que não se vê
tanto mais quanto ela queima
no ar de uma cela vazia
o homem que é posto em pé
sobre os mortos do seu dia


Félix, Moacyr. "O poema" In: Félix, Moacyr (org.).41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE.
Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

Poeta ladrão - Luis Carlos de Menezes

Todo poeta é ladrão
de beleza
de alegria
de tristeza
de poesia

Todo poeta é ladrão
mas tão descaradamente
que sem o menor pudor
vem nos dar de coração
tudo o que levou da gente



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial,2009

domingo, 17 de julho de 2011

Indivisíveis - Mario Quintana

O meu primeiro amor sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças
de cinco anos.

Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda
separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que apenas tinham a mesma fidelidade
sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que disséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se,
não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por
toda a sua vida...


Quintana, Mario,1906-1994.
Nariz de vidro/Mario Quintana. - 2º ed. -
São Paulo: Moderna,2003. - (coleção veredas)

Eu nada entendo - Mario Quintana

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...


Quintana, Mario,1906-1994.
Nariz de vidro/ Mario Quintana. - 2ª ed. -
São Paulo: Moderna,2003 - (Coleção Veredas)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Declaração de direitos - Luis Carlos de Menezes

Todo homem tem direito
a sua comunidade
e a sua intimidade

Todo homem tem direito
ao sossego
e a um bom combate

Todo homem tem direito
ao reconhecimento
e ao anonimato

Todo homem tem direito
ao perdão
e à comemoração

Todo homem tem direito
a um amor incondicional
e a fantasias secretas

Em tempo
toda mulher também


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

Ciranda - Luis Carlos de Menezes

Uma boca e outra boca
qual dessas bocas é a minha?
meia volta ou volta e meia
na ciranda cirandinha

O prazer que não quiseste
alguém teve e se fartou
o amor que ia e vinha
era louco e se curou

Com medo não se namora
e eu nem pude entrar na roda
disse um verso muito triste
disse adeus e fui-me embora


Menezes, Luis Carlos de,
Lições do acaso/ Luis carlos de Menezes
são Paulo: Ateliê Editorial, 2009

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Só lábios - Luis Carlos de Menezes

Bela tão bela
que um sábio fingiu não vê-la
que um louco tentou roubá-la
que um santo quis seduzi-la

De sábio fico devendo
de amor talvez seja louco
santo se for do pau oco

Não sei que fiz de tão certo
bela tão bela me quis

Virei do avesso e fui só lábios?


Menezes, Luis Carlos de.
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê editorial,2009.

Abismos e pontes - Luis Carlos de Menezes

Debruçar-se
no abismo de si mesmo

Eis a loucura

Debruçar-se
no abismo do outro

Eis a paixão

Ás vezes
é possível lançar pontes

Rima para a mãe - Luis Carlos de Menezes

Fernando
meu mais novo
quando menino
pediu que lhe ensinasse
a fazer poesia
para o dia das mães

Tem de ser com rima?
Claro
sem rima não é poesia

Mostrei-lhe de Drummond
Seleta em Prosa e Verso
mostrei-lhe de Bandeira
Estrela da Vida Inteira

Mesmo tendo gostado
de Porquinho da Índia
mesmo tendo visto
que sem rima
também é poesia
não arredou pé
tinha de ser rimada
Irmão rima com mão
com quem pegou meu balão
com sai pra lá seu bobão

Pai rima com sai
com desse jeito não vai
olha aí senão cai

Avó rima com dó
com não querer ficar só
com vem comer pão de ló

Tia rima com pia
com compressa de água fria
com visitar qualquer dia

Prima rima até com rima
com pé de laranja lima
não trepa nem sai de cima

E mãe veja só coitada
esta não rima com nada

Então que se dane a rima
de pai e irmão
tia ou prima
que mãe é pra ser amada
não precisa ser rimada

mãe taí pra ser querida
não hoje mas toda a vida


Menezes, Luis Carlo de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Receitas com liberdade - Luis Carlos de Menezes

Liberdades
mais que conquistas
são receitas para viver

Liberdade é pretexto
para viver com prazer

Liberdade é promessa
para viver com esperança

Liberdade é projeto
para viver com coragem

Liberdade é princípio
para viver com paixão

Liberdade é premissa
para viver com liberdade


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Zerar a conta - Luis Carlos de Menezes

Morre-se um pouco
em pequenas decepções
em médios desesperos
em grandes desilusões

É preciso
por isso
ficar atento
pra não acumular uma morte inteira

Melhor ainda
é no descuido
de uma gargalhada
de um novo gozo
de um gesto de ternura
trapacear o destino e
zerar a conta


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Todas as liberdades - Luis Carlos de Menezes

Todas as liberdades
de fato
são só duas

Uma é conhecimento
pra evitar riscos
ao escolher caminhos

Outra é aventura
pra correr riscos
Ao descobrir caminhos

Uma é filha da outra


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

domingo, 3 de julho de 2011

O Aferidor - Manoel de Barros

Tenho um Aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
O meu Aferidor deu nota dez.
Ao nomezinho de Deus no bico de uma sabiá
O Aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
O Aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
O meu Aferidor deu DESENCANTO.
(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.

Comparamento - Manoel de Barros

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra
antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya,2010.

Certas palavras tem ardimentos - Manoel de Barros

Certas palavras tem ardimentos; outras não.
A palavra jacaré fere a voz.
É como descer arranhado pelas escarpas de um serrote.
É nome com verdasco de lodo no couro.
Além disso é agríope (que tem olho medonho).
Já a palavra garça tem para nós um
sombreamento de silêncios...
E o azul seleciona ela!


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Nada é impossível de mudar - Bertolt Brecht

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.


Brecht, Bertolt, 1898-1956.
Antologia poética/ Bertolt Brecht; seleção e tradução de
Edmundo moniz. -2ª ed.- Rio de Janeiro: Elo Editora, 1982.

Poesia do exílio - Bertolt Brecht

Nos tempos sombrios
se cantará também?
Também se cantará
sobre os tempos sombrios.


Brecht, Bertolt, 1898-1956.
Antologia Poética/ Bertolt Brecht; seleção e tradução de Edmundo moniz. 2ª ed.- Rio de Janeiro: Elo Editora, 1982.

sábado, 2 de julho de 2011

O que o vento não levou - Mario Quintana

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:

um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...


Quintana, Mario,1906-1994.
Quintana de bolso/ Mario Quintana. - Porto Alegre: L&PM, 1997.

O olhar - Mario Quintana

O último olhar do condenado não é nublado
sentimentalmente por lágrimas
nem iludido por visões quiméricas.
O último olhar do condenado é nítido como uma fotografia:
vê até a pequenina formiga que sobe acaso pelo rude braço do verdugo,
vê o frêmito da última folha no alto daquela árvore, além...
Ao olhar do condenado nada escapa, como ao olhar de Deus
-um porque é eterno,
o outro porque vai morrer.
O olhar do poeta é como o olhar de um condenado...
como o olhar de Deus...


Quintana, Mario, 1906-1994.
Quintana de bolso/Mario Quintana.- Porto Alegre:L&PM,1997.

Dedicatória - Mario Quintana

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?
Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond?
Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia.
Eu escrevo para o João Cara de Pão.
Para você, que está com este jornal na mão...
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia,
O resto não passa de crônica policial-social-política.
E os jornais sempre proclamam que a "situação é crítica"!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são quotidianas como o
pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
na concha da mão.


Quintana, Mario, 1906-1994.
Quintana de bolso/Mario Quintana.-Porto Alegre:L&PM,1997.

Lições de arquitetura - (sobre a arquitetura de Oscar Niemeiyer) - Ferreira Gullar

No ombro do planeta (em Caracas)
Oscar depositou para sempre uma ave uma flor
ele não faz de pedra nossas casas
faz de asas.
No coração de Argel sofrida
fez aterrisar uma tarde uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(Com seu traço futuro Oscar nos ensina que o
sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos com matéria dura
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
Nos ensina a viver
no que ele transfigura
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve.


Lispector, Clarice, 1920-1977
Entrevistas/Clarice Lispector; [org.de Claire Williams; preparação de originais e notas biográficas de Teresa Montero].- Rio de Janeiro:
Rocco, 2007.

Não sinto - Angela Melim

Não sinto
(muito mais)
falta
nem saudade.

Estou tomando gosto das coisas.

Figuras e linguagem.

Uma laranja
diminutivo
sopinha quente
um sorriso
uma boa chuveirada.

O verão!
Como é colorido.
Super.

O Rio de Janeiro.
Uma viagem.
Contradições. Sinônimos.

Que boa a mão da idade.


Melim, Angela. "Não sinto". In: Félix, Moacir.
41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998.
Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.