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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Trecho de "Os sertões" - Euclides da Cunha

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas-
êmulas das bruxas das igrejas-
revestidas da capona preta
lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição;
as solteiras, termo que nos sertóes
tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas,
soltas na gandaíce sem freios;
as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas;
e honestas mães de famílias;
nivelando-se pelas mesmas rezas.
Faces murchas de velhas- esgrouvinhados viragos
em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece;
-rostos austeros de matronas simples;
fisionomias ingênuas de raparigas crédulas,
misturavam-se em conjunto estranho.
Todas as idades, todos os tipos, todas as cores...
Grenhas maltradas de crioulas retintas;
cabelos corredios e duros, de caboclas;
trunfas escandalosas, de africanas;
madeixas castanhas e louras de brancas legítimas,
embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo,
sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre.
Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita,
deselegantes e escorridos,
não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa:
um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor,
atenuando a monotonia das vestes encardidas
quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas,
deixando expostos os peitos cobertos de rosários,
de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos,
de dentes de animais, de bentinhos,
ou de nôminas encerrando cartas santas,
únicos atavios que perdoava
a ascese exigente do evangelizador.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ontem... - Euclides da Cunha

Ontem - quando, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão - louca - suprema
E no teu lábio, essa rósea algema,
A minha vida - gélida - prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
Como engastar tua alma num poema.
E eu não chorava enquanto tu te rias...

Hoje, que vivo desse amor ansioso
E, és minha - és minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste sendo tão ditoso!

E tremo e choro - pressentindo - forte,
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida - que é a morte...

Comparação - Euclides da Cunha

"Eu sou fraca e pequena..." Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,

Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.

Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:

Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela...
E no entretanto - é um mundo!

Página vazia - Euclides da Cunha

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse,
Perguntaria: "Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?

Poema-postal (dedicatória em 1905) - Euclides da Cunha

Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que , nos mesmos negativos;
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face.

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos...Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;

Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - deste grupo bem no meio -

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

trecho de "Os Sertões" - Euclides da Cunha

...O vaqueiro criou-se em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias - tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol, arrastando de envolta no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças.
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes.
Fez-se homem, quase sem ter sido criança.
Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão.Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida.
Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.

Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
Aprestou-se, cedo, para a luta.

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega.
As vestes são uma armadura.
Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro;calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado - é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo...

...Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia - passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes.
É inconstante como ela
É natural que o seja.
Viver é adaptar-se.
Ela o talhou à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto...