quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O pastor amoroso -parte 5

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos,e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro por Fernando Pessoa

O pastor amoroso -parte 3

Agora que sinto amor
Tenho interesse nos perfumes.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.

Alberto Caeiro por Fernando Pessoa

Quinto motivo da rosa


Antes do teu olhar, não era,
nem será depois, -primavera,
Pois vivemos do que perdura,

não do que fomos .Desse acaso
do que foi visto e amado:- o prazo
do Criador na criatura...

Não sou eu, mas sim o perfume
que em ti me conserva e resume
o resto, que as horas consomem.

Mas não chores, que no meu dia,
há mais sonho e sabedoria
que nos vagos séculos do homem.

Cecília Meireles

Quinto motivo da rosa

Quarto motivo da rosa

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser,deixar de ser assim.

Rosas verás,só de cinza franzida,
mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando em mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles

sexta-feira, 18 de setembro de 2009


A ARTE livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos - vis porque são nossos e vis porque são vis.O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso - o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.

Fernando Pessoa - Bernardo Soares

A EXPERIÊNCIA MAIOR

Eu antes tinha querido ser os outros
para conhecer o que não era eu.
Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil.
Minha experiência maior seria ser o outro dos outros:
e o outro dos outros era eu.

Clarice Lispector

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias ,não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei.
Não sei se fico ou passo.
Sei que canto.
E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

ESPELHO Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,


nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.





Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;


eu não tinha este coração que nem se mostra


Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:


- Em que espelho ficou perdida a minha face?





Cecília meireles

Para ser grande...Fernando Pessoa

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha,
porque alta vive
.
Fernando Pessoa-Ricardo Reis

Ah, um soneto! - Fernando Pessoa

- Ah, um Soneto!!!
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...
No movimento (eu mesmo me desloconesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foconos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...

Fernando Pessoa

Mar Português - Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos,
quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

(Fernando Pessoa)

ESCREVER, PROLONGAR O TEMPO - Clarice Lispetor

"Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções porque em tais períodos faço tudo para que as horas passem; e escrever é prolongar o tempo, é dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível."

Clarice Lispector