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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Eu tenho um ermo - Manoel de Barros

Eu tenho um ermo bem dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato / Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

domingo, 25 de novembro de 2012

Eu queria fazer parte das árvores - Manoel de Barros

Eu queria fazer parte das árvores como os
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu naõ poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E isso era mesmo.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Eu bem sabia - Manoel de Barros

Eu bem sabia que a nossa visão é um ato
poético do olhar.
Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta
nas margens do rio.
Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra
na beira do rio.
Depois eu quisera também que a minha palavra
fosse desaberta na margem do rio
Eu queria mesmo que as minhas palavras
fizessem parte do chão como os lagartos
fazem.
Eu queria que minhas palavras de joelhos
no chão pudessem ouvir as origens da terra.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato / Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.

Naquele dia - Manoel de Barros

Naquele dia eu estava um rio.
O próprio.
Achei em minhas areias uma concha.
A concha trazia clamores do rio.
Mas o que eu queria mesmo era de me
aperfeiçoar quanto um rio.
Queria que os passarinhos do lugar
escolhessem minhas margens para pousar.
e escolhessem minhas árvores para
cantar.
Eu queria aprender a harmonia dos gorjeios.


Barros, Manoel de, 1916.
Menino do mato / Manoel de Barros. - São Paulo; Leya, 2010.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Acho que o quintal onde a gente brincou - Manoel de Barros

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa (...)eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se  a gente cavar um buraco ao pé de goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos [...].

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

De minha mão - Manoel de Barros

De minha mão dentro do quarto
meu lambarizinho
escapuliu - ele priscava
priscava
até cair naquele
corixo.
E se beijou todo de água!
Eu se chorei...
Vi um rio indo embora de andorinhas...



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.-São Paulo: Leya, 2010.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada l - Manoel de Barros

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
-Imagens são palavras que nos faltaram.
-Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
-Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Que a palavra parede não seja símbolo de obstáculos à liberdade - Manoel de Barros

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo:Leya,2010.

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia - Manoel de Barros

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:

a-Esfregar pedras na paisagem.
b-Perder a inteligência das coisas para vê-las.(Colhida em Rimbaud).
c-Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d-Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos.
e-Perguntar distraído: - O que há de você na água?
f-Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.
g-Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão...
h-Aprender a capinar com enxada cega.
i-Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos.
j-Deixar os substantivos passarem anos no esterco,
deitados de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto de chão - como cabelos desfeitos no chão - ou como o bule de Braque - áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro - um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.
l-Jogar pedrinhas nim moscas...



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Gorjeios - Manoel de Barros

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Desejar ser 2 - Manoel de Barros

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mas curta. ( Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.



Barros, Manoel de, 1916
Poesia completa/ Manoel de Barros - São Paulo: Leya,2010.

domingo, 24 de julho de 2011

Emergência - Mario Quintana

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador0
- Rio de Janeiro:Objetiva,2001.

No descomeço era o verbo - Manoel de Barros

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.



Moriconi, Italo ( organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/ Italo Moriconi(organizador).
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

domingo, 3 de julho de 2011

O Aferidor - Manoel de Barros

Tenho um Aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
O meu Aferidor deu nota dez.
Ao nomezinho de Deus no bico de uma sabiá
O Aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
O Aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
O meu Aferidor deu DESENCANTO.
(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.

Comparamento - Manoel de Barros

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra
antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya,2010.

Certas palavras tem ardimentos - Manoel de Barros

Certas palavras tem ardimentos; outras não.
A palavra jacaré fere a voz.
É como descer arranhado pelas escarpas de um serrote.
É nome com verdasco de lodo no couro.
Além disso é agríope (que tem olho medonho).
Já a palavra garça tem para nós um
sombreamento de silêncios...
E o azul seleciona ela!


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

sábado, 18 de junho de 2011

O amor - Manoel de Barros

Fazer pessoas no frasco não é fácil
Mas se eu estudar ciências eu faço.
Sendo que não é melhor do que fazer
pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
(No jirau é coisa primitiva, eu sei,
mas é bastante proveitosa)
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso para nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.













Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo:
Leya,2010.

Biografia do orvalho 2 - Manoel de Barros

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.


Barros, Manoel de,1916-
Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo:
Leya,2010.

As bênçãos - Manoel de Barros

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo:
Leya, 2010.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Eu não vou perturbar a paz - Manoel de Barros

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.