segunda-feira, 15 de março de 2010

O poeta se aproxima da criança - Ferreira Gullar

(...) o poeta se aproxima da criança, que vê o mundo com olhos virgens, e que, por quase nada saber, está aberta ao mistério das coisas. Para a criança - como para o poeta - viver é uma incessante descoberta da vida.

Cidadezinha - Mario Quintana

Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...

Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha...Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar...

Milagre no Corcovado - Ângela Leite de Castilho Souza

Todas as noites
de céu nublado
no Corcovado
faz seu milagre
o Redentor:
fica pousado
no algodão-doce
iluminado
como se fosse
de isopor.

Mas todos sabem
que bem de perto
esse Jesus
é um gigante
de mais de mil
e cem toneladas...
Suba de trem,
vá pela estrada,
quem chega lá,
ao pé do Cristo,
vira mosquito.

E olhando em volta
para a  cidade
de ponta a ponta
maravilhosa
a gente sente
um arrepio:
o milagre
é o próprio Rio!

Pátria minha - Vinicius de Moraes

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama"...

Emigração e as consequencias - Patativa do Assaré

Neste estilo popular
Nos meus singelos versinhos,
O leitor vai encontrar
Em vez de rosas espinhos.
Na minha penosa lida
Conheço do mar da vida
As temerosas tormentas.
Eu sou o poeta da roça
Tenho mão calosa e grossa
Do cabo das ferramentas.

Por foça da natureza
Sou poeta nordestino
Porém só conto a pobreza
Do meu mundo pequenino
Eu não sei contar as glórias
Nem também conto as vitórias
Do herói com seu brasão
Nem o mar com suas águas.
Só sei contar minhas mágoas
E as mágoas do meu irmão.

Meu bom Jesus Nazareno
Pela vossa majestade
Fazei que cada pequeno
Que vaga pela cidade
Tenha boa proteção
Tenha em vez de uma prisão
Aquele medonho inferno
Que revolta e desconsola
Bom conforto e boa escola
Um lápis e o caderno.

´Duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz - Otávio Roth

Passarinho na janela,
pijama de flanela,
brigadeiro na panela.

Gato andando no telhado,
cheirinho de mato molhado,
disco antigo sem chiado.

Pão quentinho de manhã,
drops de hortelã,
grito do Tarzan.

Tirar a sorte no osso,
jogar pedrinha no poço,
um cachecol no pescoço.

Papagaio que conversa,
pisar em tapete persa,
eu te amo e vice-versa.

Vaga-lume aceso na mão,
dias quentes de verão,
descer pelo corrimão.

Almoço de domingo,
revoada de flamingo,
herói que fuma cachimbo.

Anãozinho de jardim,
lacinho de cetim,
terminar o livro assim.

Tem tudo a ver - Elias José

A poesia
tem tudo a ver
com tua dor e alegrias,
com as cores, as formas, os cheiros,
os sabores e a música
do mundo.

A poesia
tem tudo a ver
com o sorriso da criança,
o diálogo dos namorados,
as lágrimas diante da morte
os olhos pedindo pão.

A poesia
tem tudo a ver
com a plumagem, o voo,
e o canto dos pássaros,
a veloz acrobacia dos peixes,
as cores todas do arco-íris,
o ritmo dos rios e cachoeiras,
o brilho da lua, do sol e das estrelas,
a explosão em verde, em flores e frutos.

A poesia
- é só abrir os olhos e ver-
tem tudo a ver
com tudo.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Criança desconhecida... - Fernando Pessoa

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como
as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.

Quando tornar a vir a Primavera - Fernando Pessoa

Quando tornar a vir a Primavera Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

O espelho reflete certo... - Fernando Pessoa

O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.

Assim como falham as palavras... - Fernando Pessoa

Assim como falham as palavras quando querem exprimir
qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer
realidade.
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

A criança que pensa em fadas... - Fernando Pessoa

A criança que pensa em fadas e acredita em fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que  as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

sábado, 6 de março de 2010

Canção excêntrica - Cecília Meireles

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.

Se penso encontrar saída
em vez de abrir um compasso,
projecto-me num abraço
e gero uma despedida.
Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço
começa a achar um cansaço,
está a procura de espaço
para o desenho da vida.

Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
saudosa do que não faço,
do que faço, arrependida.

Marcha - Cecília Meireles

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
Nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebraram as formas do sono
com a idéia do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando a toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste;
Mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga,
é tudo que tenho,
entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho, meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade.
Tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes
dos sonhos claros que invento,
nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
Oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

quinta-feira, 4 de março de 2010

A Mario Quintana - Manuel Bandeira

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta -essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares,
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas e luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares,
Quer no horror dos lupanares,
Cheiram sempre os teus cantares.

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares,
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Nova canção do exílio - Ferreira Gullar

Veja o vídeo com Paulo José declamando o poema Nova Canção do Exílio de Ferreira Gullar - imperdível!!
 
http://www.youtube.com/watch?v=_PhIm8aW89w
 
 
Para os interessados, encontrei um vídeo de Affonso Romano de Santanna no programa Sempre um Papo, discorrendo sobre o tema Delicadeza x Violência, em 35 curtos minutos. Neste link:

http://www.youtube.com/watch?v=WLC5-ihzzgc&feature=related

terça-feira, 2 de março de 2010

Descoberta - Paulo Bomfim

Deixa que as coisas te interpretem,
Que o vento sinta tua pele,
Que as pedras meditem teus passos,
E as águas criem tua realidade.
Vive o mistério da terra,
O segredo da semente,
O caminho da seiva,
O milagre do fruto.
Deixa que as coisas meditem sobre ti,
Que ventos, pedras e águas recriem tua imagem;
Entende a mão que te colhe,
A lâmina que te despe
E sangra teu silêncio,
Reflete o mundo branco que te mastiga,
Transforma-te em carne, e em galeras de sangue
Regressa.
A vida terá partido, com bicos noturnos,
A casca da palavra.

Primeira lição - Lêdo Ivo

Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.

Consolo na praia - Carlos Drummond de Andrade

Vamos, não chores...
A infância está perdida
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-se, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.