quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ama teu ritmo... Rubén Dario (Trad. Antonio Cícero)

Ama teu ritmo e ritma tuas ações
sob sua lei, assim como teus versos;
tu és um universo de universos,
e tua alma uma fonte de canções.

A celeste unidade que supões
fará brotar em ti mundos diversos,
e, ao ressoar teus números dispersos,
pitagoriza entre as constelações.

Escuta essa retórica divina
do pássaro do ar e a noturna
irradiação geométrica adivinha;

mata essa indiferença taciturna
e pérola a pérola cristalina
engasta onde a verdade entorna a urna.

Dario Rúben. Y una sed de ilusiones infinita. Edicio e introduccion de Alberto Acereda. Barcelona: Lumen, 2000.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Lua adversa - Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vem,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para seu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Papéis VI - Cecília Meireles

Minha infância foi sobre um velho tapete oriental.
Nele aprendi a beleza das cores.
Nele sonhei com as raízes do azul e do encarnado.
E sempre me pareceu que o desenho era uma escrita:
que o tapete falava coisas,
- eu é que ainda não o podia entender.


Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem - Cecília Meireles

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza afêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.

Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.

E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de
riso e pedras.

Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.

De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano

permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.

Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A criança que pensa - Fernando Pessoa ( por Alberto Caeiro)

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe,
Sabe como é que as cousas existem, que é que existem,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto.
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Poesia / Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

O que nós vemos das cousas são as cousas - Fernando Pessoa (por Alberto Caeiro)

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso ( tristes de nós trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Poesia / Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Inesperadamente - Cecília Meireles

Inesperadamente,
a noite se ilumina:
que há outra claridade
para o que se imagina.

Que sobre-humana face
vem dos caules da ausência
abrir na noite o sonho
de sua própria essência?

Que saudade se lembra
e, sem querer, murmura
seus vestígios antigos
de secreta ventura?

Que lábio se descerra
e - a tão terna distância! -
conversa amor e morte
com palavras da infância?

O tempo se dissolve:
nada mais é preciso,
desde que te aproximas,
porta do Paraíso!

Há noite? Há vida? Há vozes?
Que espanto nos consome,
de repente, mirando-nos?
( Alma, como é teu nome?)

Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar]
-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Sonhei um sonho - Cecília Meireles

Sonhei um sonho
e lembrei-me do sonho
e esqueci-me do sonho
e sonhei que procurava
em sonho aquele sonho
e pergunto se a vida
não é um sonho que procurava um sonho.

Cecília de bolso/Cecília Meireles;[organizador Fabrício Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM,2010.

sábado, 18 de dezembro de 2010

É preciso parar - Clarice Lispector

Estou com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?
Preciso fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim - enfim, mas que medo - de mim mesma.

Aprendendo a viver/Clarice Lispector. - Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Texto de "Água Viva" - Clarice Lispector

A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer.

Água viva: ficção / Clarice Lispector.
-Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

O homem e sua sombra - Affonso Romano de Sant'Anna

Era um homem que tinha uma sombra branca
que de tão branca
ninguém a via.
Mesmo assim ela o seguia
e com ela dialogava.
Tinha-se a impressão
que uma coisa ausente
lhe fazia companhia
o duplicava
- quase seu guia.

Na verdade ele era a sombra
de sua sombra
- a parte da sombra que se via.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco,2005.

Quando Caravaggio descobriu a luz - Affonso Romano de Sant'Anna

Quando Caravaggio descobriu a luz
foi ele que saiu da sombra
de outros quadros
de outras mãos.

Não deve ter sido fácil
esse transcurso
que o digam Rembrandt e Vermeer.

Há sempre o risco da madrugada
quando, enlouquecidas, as cores
transbordam das molduras e dos seus usos.

A tais pintores
o desafio se impõe:
reinventar no claro o seu contrário
e extrair do escuro
seu luminoso discurso.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Vida artística - Affonso Romano de Sant'Anna

Queriam escalar a montanha
como quem fugisse de um afogamento.
Mas ao invés de oferecerem os ombros
para que os pés dos outros se elevassem
puxavam para baixo tentando impedir
que os demais galgassem.

Assim a escalada para cima
era para baixo uma escalada
e os que chegavam ao topo
ao invés de se extasiarem com as alturas
e a beleza dos lugares
rejubilavam-se, por algum tempo
de não terem sido ainda destruídos por seus pares.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco, 2005

domingo, 12 de dezembro de 2010

Quando ela sobrevém - Affonso Romano de Sant'Anna

É isso:
quando ela me sobrevém - a poesia
e pulsa e respira forte
a mão procura o papel
como a agulha aponta o norte.

É isso:
quando me inunda os ossos
tenso, remo com os versos que posso
derramo a alma contida
e o alquebrado pote.

É isso:
quando a poesia revem
carrego papel e lápis pra cama
como quem acomoda e ajeita
o corpo que aquece e ama.

É isso:
quando a poesia se oferta
e a insônia povoa os olhos
atravesso a pele das noites
num ofício de trevas claras.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna.Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Organizar prazeres - Affonso Romano de Sant'Anna

Cortar delicadamente a fruta
e degluti-la
densamente
como se beija a nudez única
da mulher madura.

Organizar os prazeres
olhar a paisagem
a gravura
e atento ao que está fora
concentrar-se no que está
dentro da moldura.

Do papel, a espessura
sobre a qual a mão desliza
e na qual se apura
o que será a imprevista
escritura.

Seguir cada inseto
no galho ou no gramado
com a devoção
dos livros de iluminuras.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Certa ferida - Affonso Romano de Sant'Anna

Como a árvore a que cortam um galho
e permanece(aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.

Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.

Uma flor brotava errante
na parte decepada.

Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.


Vestígios/Affonso Romano de sant'Anna.Rio de Janeiro: Rocco,2005.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Também já fui brasileiro - Carlos Drumond de Andrade

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi nas mesas dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho
que minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive um ritmo.
Fazia isto, fazia aquilo.
Meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter o meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

Alguma poesia-O livro em seu tempo/Carlos Drummond de Andrade; organização Eucanaã Ferraz- São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010

Cantiga de viúvo - Carlos Drummond de Andrade

A noite caiu na minh'alma
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...acabou.

Alguma poesia - O livro em seu tempo/Carlos Drummond de Andrade;organização Eucanaã Ferraz- São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.

Blade Runner Waltz - Paulo Leminski

Em mil novecentos e sempre,
Ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao som da valsa
A perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
Ah, não se faz mais tempo
como antigamente
Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.

La vie en close/Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1991.

S.O.S - Mario Quintana

O poema é uma garrafa de naufrágio jogada ao mar.
Quem a encontra
Salva-se a si mesmo...

O livro de haicais/Mario Quintana;São Paulo;Globo, 2009.

O poema - Mario Quintana

O poema
essa estranha máscara
Mais verdadeira do que a própria face...

O livro de haicais/Mario Quintana; São Paulo: Globo, 2009

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Perplexidades - Ferreira Gullar

a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado

Em alguma parte alguma/Ferreira Gullar;2ª ed.- Rio de Janeiro:
José Olympio, 2010

Off Price - Ferreira Gullar

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado

e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


Em alguma parte alguma/Ferreira Gullar; 2ª ed.-Rio de Janeiro: José Olympio, 2010

domingo, 5 de dezembro de 2010

Se vocês não se incomodam - Affonso Romano de Sant'Anna

Se vocês não se incomodam
vou morrer esta noite um pouco mais
Não como quem se vai ou desanima
mas como quem
dá hora extra numa usina.

Se vocês me permitem
morrerei durante o dia um outro tanto
como quem se consome
num trabalho que o fascina.

Não há tristeza nisto.
Desde Ovídio a natureza nos ensina:
a nuvem desmancha-se em outra
sem chorar
e o rio hora nenhuma se arrepende
de seu encontro com o mar.

Lição da pedra - Affonso Romano de Sant'Anna

Muitos, vindos do século 19
foram enterrados no século 20.
Outros
já atravessamos a soleira do 21
mas morreremos antes
que o século chegue ao meio e ao fim.

Alguns, é claro, planejam ir mais longe
e para tanto se exercitam
tomam vitaminas
contando com a sorte postergar a morte.

As pedras ouvem esses projetos.
Elas não almejam isto.
Não almejam
e no entanto
- conseguirão.

Gerações ll - Affonso Romano de Sant'Anna

Se tirarmos
os drogados
os suicidas
os guerrilheiros mortos
os fracassados
os canalhas
os mediocrizados
sobrariam os vitoriosos
e a vida certamente seria linda.

Linda.

- Mas seria vida?

Gerações l - Affonso Romano de Sant'Anna

Ando muito decepcionado com os homens
e comigo.
Com minha geração
em especial.
Íamos salvar o mundo
e falhamos.
Alguns ainda tentam
(Não me iludem)

Merecíamos melhor sorte.
Nós, os ilustres fracassados
- e o povo
que nem se dá conta
que tínhamos projetos ótimos para redimi-lo.