sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Aparência - Álvaro Alves de Faria

Não é um dia
este dia
mas um instante.
Nada além
nem aquém disso:
um momento.

Não é uma noite
esta noite
mas um apelo.
Nada mais
nem menos que isso:
um pedido.

Não é o mundo
este mundo
mas sim ausência.

Nem isso nem aquilo:
só aparência.




Roteiro da poesia brasileira: anos 60/ seleção e prefácio Pedro Lyra;
São Paulo: Global, 2011.

Introdução à arte das montanhas - Leonardo Fróes

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.



Roteiro da poesia brasileira; anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; São Paulo: Global, 2011.

Escrever / Não escrever - Sérgio de Castro Pinto

escrever é um suicídio branco.
um consumir-se
no fogo brando das palavras.

não escrever, um suicídio em branco.
um consumar-se sem metáforas.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60 / seleção e prefácio Pedro Lyra; São Paulo: Global, 2011.

Sugestões - Roberto Pontes

Se me dizem a palavra trigo
quero possuir a lírica semente.
Se me falam a palavra pedra
Logo imagino o leito de uma estrada.
Se a palavra polícia é-me dita
Sonho com a segurança da cidade.
Porém, se os valores vão ficando invertidos,
Se me dizem a palavra trigo
Penso então nas mãos mais calejadas;
Se me falam a palavra pedra
Logo explode a ideia de confronto;
E se a palavra polícia é ouvida
Vem com berros e o gemer dos torturados.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra;
São Paulo: Global, 2011.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Assovio - Cecília Meireles

Ninguém abra a sua porta
para ver o que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
- Porto Alegre,RS: L&PM,2010.

Os remos batem nas águas - Cecília Meireles

Os remos batem nas águas:
tem de ferir, para andar.
As águas vão consentindo-
esse é o destino do mar.


Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/ Cecília Meireles;[organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada l - Manoel de Barros

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
-Imagens são palavras que nos faltaram.
-Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
-Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Que a palavra parede não seja símbolo de obstáculos à liberdade - Manoel de Barros

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo:Leya,2010.

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia - Manoel de Barros

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:

a-Esfregar pedras na paisagem.
b-Perder a inteligência das coisas para vê-las.(Colhida em Rimbaud).
c-Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d-Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos.
e-Perguntar distraído: - O que há de você na água?
f-Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.
g-Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão...
h-Aprender a capinar com enxada cega.
i-Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos.
j-Deixar os substantivos passarem anos no esterco,
deitados de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto de chão - como cabelos desfeitos no chão - ou como o bule de Braque - áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro - um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.
l-Jogar pedrinhas nim moscas...



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

A palavra - Carlos Drummond de Andrade

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
A paixão medida/Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Miguel Sanches neto.- Rio de Janeiro: Record, 2002.

Não sei distinguir no céu as várias constelações - Cecília Meireles

Não sei distinguir no céu as várias constelações:
não sei os nomes de todos os peixes e flores,
nem dos rios nem das montanhas:
caminho por entre secretas coisas,
a cada lugar em que meus olhos pousam,
minha boca dirige uma pergunta.

Não sei o nome de todos os habitantes do mundo,
nem verei jamais todos os seus rostos,
embora sejam meus contemporâneos.

Não, não sei, na verdade, como são em corpo e alma
todos os meus amigos e parentes.
Não entendo todas as coisas que dizem,
não compreendo bem do que vivem, como vivem,
como pensam que estão vivendo.

Não me conheço completamente,
só nos espelhos me encontro,
tenho muita pena de mim.

Não penso todos os dias exatamente
do mesmo modo.
As mesmas coisas me parecem a cada instante diversas.
Amo e desamo, sofro e deixo de sofrer,
ao mesmo tempo, nas mesmas circunstâncias.

Aprendo e desaprendo,
esqueço e lembro,
meu Deus, que águas são estas onde vivo,
que ondulam em mim, dentro e fora de mim?

Se dizem meu nome, atendo por hábito.
Que nome é o meu?
Ignoro tudo.

Quando alguém diz que sabe alguma coisa,
fico perplexa:
ou estará enganado, ou é um farsante
- ou somente eu ignoro e me ignoro desta maneira?

E os homens combatem pelo que julgam saber.
E eu, que estudo tanto,
inclino a cabeça sem ilusões,
e a minha ignorância enche-me de lágrimas as mãos.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM,2010.

Todas as coisas tem nome - Cecília Meireles

Todas as coisas têm nome.
(Tem nome todas as coisas?)

Todos os verbos são atos.
(São atos todos os verbos?)

Com a gramática e o dicionário
faremos nossos pequenos exercícios.

Mas quando lermos em voz alta o que escrevemos,
não saberão se era prosa ou verso,
e perguntarão o que se há de fazer com esses escritos:

porque existe um som de voz,
e um eco - e um horizonte de pedra
e uma floresta de rumores e água

que modificam os nomes e os verbos
e tudo não é somente léxico e sintaxe.

Assim tenho visto.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organização Fabricio Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Não sei o que desgosta a minha alma doente - Fernando Pessoa

Não sei o que desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Dói-me realmente.

Como um barco absorto
Em se naufragar
À vista do porto
E num calmo mar.

Por meu ser me afundo,
P'ra longe da vista.
Durmo o incerto mundo.



Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia, 1902-1917 / Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das letras, 2006.

Poente - Fernando Pessoa

A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.

Não me toques, fales, olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...

Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.

Quero estar só nesta hora...
Sem tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,

Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, iriado
De ti, mancha nesta calma

Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.



Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia, 1902-1917 / Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Ao sentir nos pássaros - Carlos Drummond de Andrade

Ao sentir nos pássaros
tanta liberdade
e aéreo poder,
imagina um pássaro
superior a todos
e tão invisível
que seu vôo deixe
sensação de sonho.
Com leveza e graça
o homem pensa Deus.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
A paixão medida / Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Miguel Sanches Neto.- Rio de Janeiro: Record, 2002.

A folha - Carlos Drummond de Andrade

A natureza são duas.
Uma,
tal qual se sabe a si mesma.
Outra, a que vemos. Mas vemos?
Ou é a ilusão das coisas?

Quem sou eu para sentir
o leque de uma palmeira?
Quem sou, para ser senhor
de uma fechada, sagrada
arca de vidas autônomas?

A pretensão de ser homem
e não-coisa ou caracol
esfacela-me em frente à folha
que cai, depois de viver
intensa, caladamente,
e por ordem do Prefeito
vai sumir na varredura
mas continua em outra folha
alheia a meu privilégio
de ser mais forte que as folhas.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
A paixão medida / Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Miguel Sanches Neto. - Rio de Janeiro: Record, 2002.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Receita contra dor de amor - Roseana Murray

chore um mar inteiro
com todos os seus barcos a vela
chore o céu e suas estrelas
os seus mistérios o seu silêncio
chore o equilibrista caminhando
sobre a face de um poema
chore o sol e a lua
a chuva e o vento

para que uma nova semente
entre pela janela adentro



Murray, Roseana
Receitas de olhar/Roseana Murray; ilustrações Elvira Vigna. - São Paulo: FTD, 1997.- (Coleção falas poéticas)

Receita de se olhar no espelho - Roseana Murray

se olhe de frente
de lado
de costas
de cabeça para baixo
pinte o espelho
de azul dourado vermelho
faça caretas ria sorria
feche os olhos abra os olhos
e se veja sempre surpresa

quem é você?



Murray, Roseana
Receitas de olhar/Roseana Murray; ilustrações Elvira Vigna. - São Paulo: FTD,1997. - (Coleção falas poéticas)

Receita de olhar - Roseana Murray

nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas
o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol

faça do seu olhar imensa caravela



Murray, Roseana
Receitas de olhar/ Roseana Murray; Ilustrações Elvira Vigna. - São Paulo:
FTD, 1997. - (Coleção falas poéticas)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Acontece em Deus - Fernando Pessoa

Entre mim e a vida há uma ponte partida
Só os meus sonhos passam por ela...
Às vezes na aragem vêm de outra margem
Aromas a uma realidade bela;

Mas só sonhando atravesso o brando
Rio e me encontro a viver e a crer...
Se olho bem, vejo - pobre do desejo! -
Partida a ponte para Viver.

E então memoro num choro
Uma vida antiga que nunca tive
Em que era inteira a ponte inteira
E eu podia ir para onde se vive

E então me invade uma saudade
Dum misterioso passado meu
Em que houvesse tido um outro sentido
Que me falta pra ser, não sei como, eu.



Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Onde estão os momentos que vivi?

Onde estão os momentos que vivi?
Onde estão as ideias que esqueci?
Talvez existam nalgum paraíso
Delicioso de vago e de preciso,
E ali me esperem para me dizer
Que foi melhor que houvesse de as perder,
Porque assim à grandeza de chorá-las
Junto a beleza d'alma de ancontrá-las
Já quando do dizê-las a ânsia fútil
As não tornara cada uma inútil...
E esta ideia me faz menos triste
Mas esse paraíso acaso existe?


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia, 1902-1917/ Fernando Pessoa, edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

domingo, 27 de novembro de 2011

Poemas inconjuntos [ 283 ] - Fernando Pessoa

O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.



Pessoa, Fernando. Ficções de interlúdio( Poemas completos de Alberto Caeiro: "Poemas inconjuntos"). In. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

Dizem? - Fernando Pessoa

Dizem?
Esquecem.

Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por que
esperar?
- Tudo é
sonhar.



Pessoa, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
Postado Em "Acontecimentos" por Antonio Cícero.

Pobre velha música! - Fernando Pessoa

Pobre velha música!
Não sei por que agrado
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.



Pessoa, Fernando. "Cancioneiro".In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1986.
Postado em "Acontecimentos" de Antonio Cícero.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Gorjeios - Manoel de Barros

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Desejar ser 2 - Manoel de Barros

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mas curta. ( Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.



Barros, Manoel de, 1916
Poesia completa/ Manoel de Barros - São Paulo: Leya,2010.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Soneto - José Albano

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas tão pouco dura;
E ainda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.



Albano, José. "Soneto". In: Campos, Paulo Mendes. Forma e expressão do soneto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1952.

Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque - Jorge Larrosa Bondía

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.





Notas sobre a experiência e o saber de experiência - Jorge Larrosa Bondía - Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas , traduzida e publicada em julho de 2001, Leituras SME.

Espécie de canção - William Carlos Williams

Deixar a cobra espreitar sob
a erva
e a escrita
ser palavras, lentas e rápidas, afiadas
ao golpear, quietas ao aguardar,
insones.

- pela metáfora reconciliar
pessoas e pedras.
Compor. (Nenhuma ideia
senão nas coisas.) Inventar!
Saxifraga é minha flor que cinde
rochas.




Williams, William carlos. "The Wedge". In:_____. The collected poems of William Carlos Williams. Vol.2. New York: New Directions,1986.

Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

Solidão - Juan Ramón Jiménez

Em ti estás todo, mar, e contudo
como estás sem ti, e só,
e longe, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas vão, como meus pensamentos,
e vêm, vão e vêm,
beijando-se, separando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se,

És tu e não o sabes,
teu coração te bate e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar só!




Jiménez, Juan Ramón. "Soledad". In: Rico, Francisco(org.). Mil años de poesia española. Antologia comentada. Barcelona: Planeta, 1996.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Noite adentro - Caio Dezorzi

Quero te dormir
Ver-te em sono
Noite adentro.

Quero imiscuir
No teu sonho
Vida afora.

Fundo da Gaveta - blog do Caio Dezorzi: Comunicado

Fundo da Gaveta - blog do Caio Dezorzi: Comunicado: Fui acometido por uma forte dor no peito hoje. Ao chegar ao pronto-socorro fui internado imediatamente. Toda a junta médica disse que o que ...

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Semeaduras: Nada Adiantaria Fazer (Se Tentasse)

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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Quando eu tiver setenta anos - Paulo Leminski

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar esta vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Maresia - Antonio Cicero

O meu amor me deixou
levou minha identidade
não sei mais bem onde estou
nem onde a realidade.

Ah, se eu fosse marinheiro
era eu quem tinha partido
mas meu coração ligeiro
não se teria partido

ou se partisse colava
com cola de maresia
eu amava e desamava
sem peso e com poesia.

Ah, se eu fosse marinheiro
seria doce meu lar
não só o Rio de Janeiro
a imensidão e o mar

leste oeste norte sul
onde um homem se situa
quando o Sol sobre o azul
ou quando no mar a Lua

Não buscaria conforto
nem juntaria dinheiro
um amor em cada porto
Ah, se eu fosse marinheiro.



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

As pedras são muito mais lentas - Arnaldo Antunes

As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam juntos formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como braços. Os rabos dos cachorros servem como riso. As vacas comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez. Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são para mastigar mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meia-noites duram menos do que os meio-dias. As tartarugas nascem em ovos mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As músicas dos índios fazem cair a chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros fazem muitas curvas pra subir a serra. Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Uma voz - Ferreira Gullar

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando



A lua no cinema e outros poemas/Organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Falar com coisas - João Cabral de Melo Neto

As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarréia.



a lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras,2011.

domingo, 30 de outubro de 2011

Alma - Fernando Pessoa (por Ricardo Reis)

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.



Literatura portuguesa. Citações e pensamentos. Pessoa, Fernando, 1888-1935. Paulo Neves da Silva (org.).-São Paulo: Leya, 2011.

Fronteiras - Mauro Luis Iasi

Os corações
(assim como as pátrias)
não deviam te fronteiras.

Queria explodi-los
em suspiros, gozo e anátemas
para que de tantos pedaços
brotassem outras centenas.

Os corações
(assim como as pátrias)
não deviam ter fronteiras...

mas têm.



Iasi, Mauro Luis
Meta amor fases: coletânea de poemas/Mauro Luis Iasi. 2ª.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

A medida do verso - Mauro Luis Iasi

Quem quiser medir meu verso
não pense em sílabas:
pense em lágrimas.


Quem quiser sentir meu verso
não pense em rimas:
pense em sinas... pense em sagas.



Iasi, Mauro Luis
Meta amor fases: coletânea de poemas/ Mauro Luis Iasi.-2ªed..- São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

domingo, 16 de outubro de 2011

Basta de ser o outro - Paulo Bonfim

Basta de ser o outro...
O herdeiro da terra,
O neto de seus avós!
Basta de ser
O que leu
E o que ouviu...
À terra devolvo
O cálcio, o ferro, o fósforo;
À nuvem devolvo a água rubra,
Aos mortos,
As angústias herdadas,
Aos vivos
Os gestos e as palavras recebidas...
Basta de ser o outro,
Colcha de retalhos alheios,
Cobrindo um frio verdadeiro.



Bonfim, Paulo. Poemas escolhidos. Círculo do livro.

Soneto XXIV - Paulo Bonfim

Agora, peço muito que me ajudes
A retornar ao ponto de partida,
Novos olhos revejam minha vida
Antes que ela transborde dos açudes.

Despirei nesse instante as atitudes,
Minha roupa de estrelas já cerzida,
O chapéu de alvoradas e a esquecida
Capa de chuvas e de ventos rudes.

Comigo ficarão unicamente
Os versos que escrevi e as derradeiras
Flores que desfolhaste em minha mente.

Depois, no grande espelho, a tarde é calma:
- Saber que passo além destas fronteiras,
Com meus disfarces já cobertos de alma!



Bonfim, Paulo. Poemas escolhidos. Círculo do Livro

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O pão - Paulo Bonfim

O pão que mastigas
Com lascas de lua,
Penetra tua noite
E leva pelos caminhos da fome
Trigais ao vento.
Em tua memória
Marcaste com grãos
O atalho dos dias na floresta.
Retorna sobre ti mesmo
E terás descoberto o poema,
Colhe as espigas floridas de teu passo,
E terás descoberto a vida.



Bonfim, Paulo. Poemas escolhidos. São Paulo. Circulo do livro.

Amor foi embora - Macedonio Fernández

Amor foi embora; enquanto durou
de tudo fez prazer;
Quando foi embora
Nada deixou que não doesse.



Fernández, Macedonio. Poemas. Buenos Aires:
Corregidor, 2010

Por ACONTECIMENTOS

Um novo organismo novo - Jorge Salomão

um novo organismo novo
pássaros despertam manhã
caboclo triste
ar de sertão
vida e homens áridos
com o pé na água do rio corrente
correr trechos
estradas
tampas
boca aberta cariada a sorrir por
montanhas de desconexas palavras
soltas ao vento no balanço da suave
palmeira que brilha nos últimos
raios de sol da tarde de hoje.


Salomão , Jorge. Conversa de mosquitos.
Rio de Janeiro: Jacaré Produções, 2011.

Por ACONTECIMENTOS

A mulher e a casa - João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.



Melo Neto, João Cabral de, 1920-
Antologia Poética. 4ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978.

A educação pela pedra - João Cabral de Meo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
( de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.



Melo Neto, João Cabral de, 1920-
Antologia Poética. 4ªedição. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Troca - Mario Benedetti

É importante fazê-lo

quero que me contes
teu último otimismo
eu te ofereço minha última
confidência

mesmo que seja um truque
mínimo

fiquemos cara a cara
estás só
estou só
por algo somos próximos

a solidão também
pode ser
uma chama.



Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen.- Campinas, SP: Venus, 2010

Façamos um trato - Mario Benedetti

Companheira
você sabe
que pode contar
comigo
não até dois
ou até dez
mas contar
comigo

se alguma vez
você repara
quando a olho nos olhos
e uma faísca de amor
reconhece nos meus
não alerte seus fuzis
nem pense quanto delírio
apesar da faísca
ou talvez porque existe
você pode contar
comigo

se outras vezes
me encontra
arredio sem motivo
não pense quanta fraqueza
assim mesmo pode contar
comigo

porém façamos um trato
eu gostaria de contar
contigo
é tão lindo
saber que você existe
a gente se sente vivo
e quando digo isto
quero dizer contar
mesmo que seja até dois
mesmo que seja até cinco
não para que corra
atenciosa em meu auxilio
mas para saber
com toda a certeza
que você sabe que pode
contar comigo.



Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen. - Campinas, SP: Venus, 2010.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A criança que fui chora na estrada - Fernando Pessoa

I

A criança que fui chora na estrada (1933)

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.



Pessoa, Fernando. Novas Poesias Inéditas. Seleção, organização e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno. Lisboa: Ática, 1973.

Silêncio e Palavra - Thiago Mello

A couraça de palavras
protege nosso silêncio
e esconde aquilo que somos.

Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.

Ademais, nem são palavras.
Sons vazios de mensagem,
são como fria mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros cansados,
que não encontram pouso,
certamente tombarão.



Mello, Thiago. Poemas Preferidos PeloAutor e seus Leitores. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2006.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O amor é uma companhia - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.



Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia/Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins,
Richard Zenith. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Todas as opiniões que há sobre a natureza - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas.
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?
Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.


Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia/Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. - São Paulo: Companhia das Letras,2001.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Enigmas - Mario Benedetti

Todos temos um enigma
e como é lógico ignoramos
qual é sua chave seu sigilo
raspamos a proximidade
colecionamos os despojos
nos extraviamos nos ecos
e o perdemos no sonho
justo quando ia se decifrar

e tu também tens o teu
um enigma tão simples
que os postigos não o escondem
nem o descartam os presságios
está em teus olhos e os fechas
está em tuas mãos e as retiras
está em teus peitos e os cobres
está em meu enigma e o abandonas




Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen. - Campinas, SP: Verus, 2010.

Bem-vinda - Mario Benedetti

Penso que vais chegar diferente
não exatamente mais linda
nem mais forte
nem mais dócil
nem mais prudente
só que vais chegar diferente
como se essa temporada sem me ver
tivesse te surpreendido também
talvez porque sabes
como te penso e te levo em conta

no fim das contas a melancolia existe
mesmo que não choremos nos embarques fantasmais
nem sobre as almofadas da ternura
nem sob o céu opaco

eu melancolio
tu melancolias
e como me aporrinha que ele melancolie

teu rosto é a vanguarda
talvez chega primeiro
porque eu o pinto nas paredes
com traços invisíveis e seguros

não esqueças que teu rosto
me olha como povo
sorri e enraivece e canta
como povo
e isso te dá uma luz
inapagável
agora não tenho dúvidas
vais chegar diferente e com marcas
com novas
com profundas
com franqueza

sei que vou te querer sem perguntas
sei que vais me querer sem respostas.




Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen.- Campinas, SP: Venus, 2010.

sábado, 3 de setembro de 2011

Troca - Mario Benedetti

É importante fazê-lo

quero que me contes
teu último otimismo
eu te ofereço minha última
confidência

mesmo que seja um truque
mínimo

fiquemos cara a cara
estás só
estou só
por algo somos próximos

a solidão também
pode ser
uma chama.




Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen. - Campinas, SP: Venus, 2010.

´Tática e estratégia - Mario Benedetti


Minha tática é
olhar-te
aprender como és
querer-te como és

minha tática é
falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é
ficar na tua memória
não sei como nem sei
com que pretexto
mas ficar em ti

minha tática é
ser franco
e saber que és franca
e que não nos vendamos
simulacros
para que entre os dois
não existam véus
nem abismos

minha estratégia é
no entanto
mais profunda e mais
simples

minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.



Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen.- Campinas, SP: Venus, 2010.

Estados de ânimo - Mario Benedetti

Umas vezes me sinto
como pobre na colina
e outras como montanha
de cumes repetidos

umas vezes me sinto
como um precipício
e em outras como um céu
azul mas distante

Às vezes a gente é
manancial entre rochas
e outras vezes árvore
com as últimas folhas

mas hoje me sinto apenas
como lagoa insone
com um embarcadouro
já sem embarcações

uma lagoa verde
imóvel e paciente
de bem com suas algas
seus musgos e seus peixes

sereno em minha confiança
confiante em que uma tarde
te aproximes e te olhes
te olhes ao olhar-me.



Benedetti, Mario,1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen.- Campinas, SP: Vênus, 2010.

domingo, 14 de agosto de 2011

Flora - Bartolomeu Campos de Queirós ( trecho)

Flora era como madrugada.
Trazia no corpo a cor da noite somada
ao brilho do dia.
Era ônix molhado com a claridade do sol.
Sua maneira de viver era estar entre
o plantio e a colheita.
Passava os dias escutando o sol,
entre nuvens, para nas noites dialogar
com a lua, entre estrelas.
E para melhor escutar, Flora
restava sempre em silêncio.
Assim sendo, Flora era medianeira
entre a penumbra e o mistério.

...Flora segurava sementes
na palma da mão e sua alma se abria em festa
diante de tamanho alumbramento.
Seus olhos inquietavam o pensamento ao pensar
no gosto, no perfume, na cor, na forma existente
no interior de cada grão.
Poesia contida e pronta para interrogar
a possibilidade do infinito.
Nesse momento ela descobria que nascer
só valia a pena quando para bem viver a diferença.



Queirós, Bartolomeu Campos de
Flora/Bartolomeu Campos de Queirós;
ilustrações Ellen Pestili. 2ªed. - São Paulo: Global, 2009.

O albatroz - Charles Baudelaire

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os caminhos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu ninho!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flexa no ar,
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.



Baudelaire, Charles. "O Albatroz". Tradução de Guilherme de Almeida. In:Magalhães Junior,R. Antologia de poetas franceses do século XV ao século XX. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1950.
Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pronominais - Oswald de Andrade

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/ Italo Moriconi(organizador).
-Rio de Janeiro:Objetiva, 2001.

Canção do exílio - Murilo Mendes

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilogos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).
-Rio de Janeiro:Objetiva, 2001.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Confidência do itabirano - Carlos Drummond de Andrade

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...



Moriconi,Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva,2001.

"Há uma rosa caída" - Maria Ângela Alvim

Há uma rosa caída
Morta
Há uma rosa caída
Bela
Há uma rosa caída
Rosa



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador).
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Quando eu morrer quero ficar - Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paiçandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça.
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade.

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há-de-vir,
O joelho na Universidade,
Saudade.

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra( de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.



Moriconi,Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Com licença poética - Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
Acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.



Moriconi,Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi (organizador).
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

domingo, 24 de julho de 2011

Sintonia para pressa e presságio - Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do movimento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador)
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Nadador - Cecília Meireles

O que me encanta é a linha alada
das tuas espáduas, e a curva
que descreves, pássaro da água!

É a tua fina, ágil cintura,
e eese adeus da tua garganta
para cemitérios de espuma!

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda, rápida e branda.

E apenas por estar prevendo,
longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento...



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador)
- Rio de Janeiro: Objetiva,2001.

Emergência - Mario Quintana

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador0
- Rio de Janeiro:Objetiva,2001.

No descomeço era o verbo - Manoel de Barros

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.



Moriconi, Italo ( organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/ Italo Moriconi(organizador).
-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O futuro - Fernando Pessoa (por Álvaro de Campos)

Sei que me espera qualquer coisa
Mas não sei que coisa me espera.

Como um quarto escuro
Que eu temo quando creio que nada temo
Mas só o temo, por ele, temo em vão.
Não é uma presença: é um frio e um medo.
O mistério da morte a mim o liga
Ao brutal fim do meu poema.



Pessoa, Fernando,1888-1935.
Poesia/ Álvaro de Campos: edição Teresa Rita Lopes.
-São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

A liberdade, sim, a liberdade! - Fernando Pessoa ( por Álvaro de Campos)

A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância qu rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo sério...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?



Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/Álvaro de Campos: edição Teresa Rita Lopes.-
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Poema de canção sobre a esperança - Fernando Pessoa (por Álvaro de Campos)

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios -
Os melhores lírios -
E as melhores rosas
Sem receber nada,
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ Álvaro de Campos; edição Teresa Rita Lopes -
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Quietude - Luis Carlos de Menezes

Alma que quer sossego
não se move por bens
nem saber nem virtude

Basta a quietude


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial,2009

O poema - Moacyr Félix

Ou se vive por inteiro
ou pela metade a gente
escreve a vida
que não viveu.

E o papel em branco então serve
como serve ao prisioneiro
a parede branca do cárcere.

O que não foi é o ser que é
no poema, esse ato mágico
de uma chama que não se vê
tanto mais quanto ela queima
no ar de uma cela vazia
o homem que é posto em pé
sobre os mortos do seu dia


Félix, Moacyr. "O poema" In: Félix, Moacyr (org.).41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE.
Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

Poeta ladrão - Luis Carlos de Menezes

Todo poeta é ladrão
de beleza
de alegria
de tristeza
de poesia

Todo poeta é ladrão
mas tão descaradamente
que sem o menor pudor
vem nos dar de coração
tudo o que levou da gente



Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial,2009

domingo, 17 de julho de 2011

Indivisíveis - Mario Quintana

O meu primeiro amor sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças
de cinco anos.

Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda
separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que apenas tinham a mesma fidelidade
sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que disséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se,
não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por
toda a sua vida...


Quintana, Mario,1906-1994.
Nariz de vidro/Mario Quintana. - 2º ed. -
São Paulo: Moderna,2003. - (coleção veredas)

Eu nada entendo - Mario Quintana

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...


Quintana, Mario,1906-1994.
Nariz de vidro/ Mario Quintana. - 2ª ed. -
São Paulo: Moderna,2003 - (Coleção Veredas)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Declaração de direitos - Luis Carlos de Menezes

Todo homem tem direito
a sua comunidade
e a sua intimidade

Todo homem tem direito
ao sossego
e a um bom combate

Todo homem tem direito
ao reconhecimento
e ao anonimato

Todo homem tem direito
ao perdão
e à comemoração

Todo homem tem direito
a um amor incondicional
e a fantasias secretas

Em tempo
toda mulher também


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

Ciranda - Luis Carlos de Menezes

Uma boca e outra boca
qual dessas bocas é a minha?
meia volta ou volta e meia
na ciranda cirandinha

O prazer que não quiseste
alguém teve e se fartou
o amor que ia e vinha
era louco e se curou

Com medo não se namora
e eu nem pude entrar na roda
disse um verso muito triste
disse adeus e fui-me embora


Menezes, Luis Carlos de,
Lições do acaso/ Luis carlos de Menezes
são Paulo: Ateliê Editorial, 2009

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Só lábios - Luis Carlos de Menezes

Bela tão bela
que um sábio fingiu não vê-la
que um louco tentou roubá-la
que um santo quis seduzi-la

De sábio fico devendo
de amor talvez seja louco
santo se for do pau oco

Não sei que fiz de tão certo
bela tão bela me quis

Virei do avesso e fui só lábios?


Menezes, Luis Carlos de.
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê editorial,2009.

Abismos e pontes - Luis Carlos de Menezes

Debruçar-se
no abismo de si mesmo

Eis a loucura

Debruçar-se
no abismo do outro

Eis a paixão

Ás vezes
é possível lançar pontes

Rima para a mãe - Luis Carlos de Menezes

Fernando
meu mais novo
quando menino
pediu que lhe ensinasse
a fazer poesia
para o dia das mães

Tem de ser com rima?
Claro
sem rima não é poesia

Mostrei-lhe de Drummond
Seleta em Prosa e Verso
mostrei-lhe de Bandeira
Estrela da Vida Inteira

Mesmo tendo gostado
de Porquinho da Índia
mesmo tendo visto
que sem rima
também é poesia
não arredou pé
tinha de ser rimada
Irmão rima com mão
com quem pegou meu balão
com sai pra lá seu bobão

Pai rima com sai
com desse jeito não vai
olha aí senão cai

Avó rima com dó
com não querer ficar só
com vem comer pão de ló

Tia rima com pia
com compressa de água fria
com visitar qualquer dia

Prima rima até com rima
com pé de laranja lima
não trepa nem sai de cima

E mãe veja só coitada
esta não rima com nada

Então que se dane a rima
de pai e irmão
tia ou prima
que mãe é pra ser amada
não precisa ser rimada

mãe taí pra ser querida
não hoje mas toda a vida


Menezes, Luis Carlo de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Receitas com liberdade - Luis Carlos de Menezes

Liberdades
mais que conquistas
são receitas para viver

Liberdade é pretexto
para viver com prazer

Liberdade é promessa
para viver com esperança

Liberdade é projeto
para viver com coragem

Liberdade é princípio
para viver com paixão

Liberdade é premissa
para viver com liberdade


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Zerar a conta - Luis Carlos de Menezes

Morre-se um pouco
em pequenas decepções
em médios desesperos
em grandes desilusões

É preciso
por isso
ficar atento
pra não acumular uma morte inteira

Melhor ainda
é no descuido
de uma gargalhada
de um novo gozo
de um gesto de ternura
trapacear o destino e
zerar a conta


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/ Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Todas as liberdades - Luis Carlos de Menezes

Todas as liberdades
de fato
são só duas

Uma é conhecimento
pra evitar riscos
ao escolher caminhos

Outra é aventura
pra correr riscos
Ao descobrir caminhos

Uma é filha da outra


Menezes, Luis Carlos de
Lições do acaso/Luis Carlos de Menezes
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009

domingo, 3 de julho de 2011

O Aferidor - Manoel de Barros

Tenho um Aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
O meu Aferidor deu nota dez.
Ao nomezinho de Deus no bico de uma sabiá
O Aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
O Aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
O meu Aferidor deu DESENCANTO.
(O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.

Comparamento - Manoel de Barros

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra
antes de chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya,2010.

Certas palavras tem ardimentos - Manoel de Barros

Certas palavras tem ardimentos; outras não.
A palavra jacaré fere a voz.
É como descer arranhado pelas escarpas de um serrote.
É nome com verdasco de lodo no couro.
Além disso é agríope (que tem olho medonho).
Já a palavra garça tem para nós um
sombreamento de silêncios...
E o azul seleciona ela!


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Nada é impossível de mudar - Bertolt Brecht

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.


Brecht, Bertolt, 1898-1956.
Antologia poética/ Bertolt Brecht; seleção e tradução de
Edmundo moniz. -2ª ed.- Rio de Janeiro: Elo Editora, 1982.

Poesia do exílio - Bertolt Brecht

Nos tempos sombrios
se cantará também?
Também se cantará
sobre os tempos sombrios.


Brecht, Bertolt, 1898-1956.
Antologia Poética/ Bertolt Brecht; seleção e tradução de Edmundo moniz. 2ª ed.- Rio de Janeiro: Elo Editora, 1982.

sábado, 2 de julho de 2011

O que o vento não levou - Mario Quintana

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:

um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...


Quintana, Mario,1906-1994.
Quintana de bolso/ Mario Quintana. - Porto Alegre: L&PM, 1997.

O olhar - Mario Quintana

O último olhar do condenado não é nublado
sentimentalmente por lágrimas
nem iludido por visões quiméricas.
O último olhar do condenado é nítido como uma fotografia:
vê até a pequenina formiga que sobe acaso pelo rude braço do verdugo,
vê o frêmito da última folha no alto daquela árvore, além...
Ao olhar do condenado nada escapa, como ao olhar de Deus
-um porque é eterno,
o outro porque vai morrer.
O olhar do poeta é como o olhar de um condenado...
como o olhar de Deus...


Quintana, Mario, 1906-1994.
Quintana de bolso/Mario Quintana.- Porto Alegre:L&PM,1997.

Dedicatória - Mario Quintana

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?
Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond?
Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia.
Eu escrevo para o João Cara de Pão.
Para você, que está com este jornal na mão...
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia,
O resto não passa de crônica policial-social-política.
E os jornais sempre proclamam que a "situação é crítica"!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são quotidianas como o
pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
na concha da mão.


Quintana, Mario, 1906-1994.
Quintana de bolso/Mario Quintana.-Porto Alegre:L&PM,1997.

Lições de arquitetura - (sobre a arquitetura de Oscar Niemeiyer) - Ferreira Gullar

No ombro do planeta (em Caracas)
Oscar depositou para sempre uma ave uma flor
ele não faz de pedra nossas casas
faz de asas.
No coração de Argel sofrida
fez aterrisar uma tarde uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida
(Com seu traço futuro Oscar nos ensina que o
sonho é popular)
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos com matéria dura
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
Nos ensina a viver
no que ele transfigura
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve.


Lispector, Clarice, 1920-1977
Entrevistas/Clarice Lispector; [org.de Claire Williams; preparação de originais e notas biográficas de Teresa Montero].- Rio de Janeiro:
Rocco, 2007.

Não sinto - Angela Melim

Não sinto
(muito mais)
falta
nem saudade.

Estou tomando gosto das coisas.

Figuras e linguagem.

Uma laranja
diminutivo
sopinha quente
um sorriso
uma boa chuveirada.

O verão!
Como é colorido.
Super.

O Rio de Janeiro.
Uma viagem.
Contradições. Sinônimos.

Que boa a mão da idade.


Melim, Angela. "Não sinto". In: Félix, Moacir.
41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998.
Postado por Antonio Cícero em Acontecimentos.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até hoje - Cecília Meireles

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até hoje
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.
Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.

E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.

De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.


Meireles, Cecília,1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [org. Fabrício Carpinejar].
-POrto Alegre, RS: L&PM,2010.

Ausência - Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo
da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só com os veleiros nos portos silenciosos.
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Moraes, Vinícius, 1913-1980.
Antologia poética/ Vinícius de Moraes.- São Paulo: Companhia
das Letras,2009.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Cada dia - Fernando Pessoa (por Ricardo Reis)

Cada dia sem gozo não foi teu:
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.

Não pesa que ames, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco,se te é grato.

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!



Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia/ [poesias de] Ricardo Reis. - São Paulo: Companhia das Letras,2000.

Flor amarela - Ivan Junqueira

Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela,
dentro da flor amarela,
o menino que você era.

Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O amor é uma companhia - Fernando Pessoa (por Alberto Caeiro)

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.




Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ Alberto Caeiro;edição Fernando Cabral Martins,
Richard Zenih.-São Paulo: Companhia das letras, 2001.

Todos os dias acordo com alegria e pena - Fernando Pessoa (por Alberto Caeiro)

Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de ser comigo.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

Que ama é diferente de quem é.
É a mesma pessoa sem ninguém.



Pessoa/Fernando, 1888-1935.
Poesia/Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral martins,
Richard Zenih.- São Paulo: Companhia das letras, 2001.

Agora que sinto amor - Fernando Pessoa (por Alberto Caeiro)

Agora que sinto amor
Tenho interesse nos perfumes.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.



Pessoa/Fernando, 1888-1935.
Poesia/Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins,
Richard Zenih.- São Paulo: Companhia das letras,2001

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Arte de amar - Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.



Bandeira, Manuel,1886-1968
Antologia poética.-12.ed.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001.

Rua - Cecília Meireles

Procuro a rua
que ainda me resta:
é longa, é alta,
não é essa.

Esqueço o nome,
por sono ou pressa:
é alta, é clara,
mas não é esta.

Em cada esquina
havia festa:
é clara, é vasta,
não é essa.

Nunca me lembro
onde começa:
é vasta, é longa,
mas não é esta.

Rua que não
se manifesta:
é longa, é alta,
não é essa.



Meireles, Cecília,1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [Organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM,2010.

terça-feira, 21 de junho de 2011

O duplo - Affonso Romano Sant'Anna

Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.

Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.



San'Anna, Affonso Romano, 1937-
Poesia reunida: 1965-1999/ Affonso Romano de Sant'Anna.- Porto Alegre:
L&PM,2004.

domingo, 19 de junho de 2011

Floral - Affonso Romano de Sant'Anna

É isso.É primavera.
estou feliz, em febre.
Outros
politizam suas dores.
Eu
me polenizo
ou polemizo
- com as flores.



Sant'Anna, Affonso Romano, 1937-
Poesia reunida: 1965-1999/ Affonso Romano Sant'Anna. - Porto Alegre:
L&PM,2004.

Álibi - Guilhermede Almeida

Não estive presente
quando se perpetrou
o crime de viver:
quando os olhos despiram,
quando as mãos se tocaram,
quando a boca mentiu,
quando os corpos tremeram,
quando o sangue correu.
Não estive presente.
Estive fora, longe
do mundo, no meu mundo
pequeno e proibido
que embrulhei e amarrei
com cordéis apertados
de meridianos meus
e de meus paralelos.
Os versos que escrevi
provam que estive ausente.

Eu estou inocente.



Almeida, Guilherme de,1890-1969.
os melhores poemas de Guilherme de Almeida/seleção de CarlosVogt - 3ªed.
São Paulo-:Global,2004.

Presente vivo - Affonso Romano de Sant'Anna

Viver
é conjugação diária
do presente.

Viver
é presentear.
Mais do que um jeito de doer
é um modo de doar.

E um presente
mais que um objeto
é o elo entre dois olhos
a floração do gesto
o prateado evento
e o cristalino afeto.

Não se dá
apenas pelo prazer
de ver
o outro receber.
Dá-se
para que o outro
entre-abrindo-se ao presente
também dê.



Sant'Anna, Affonso Romano, 1935-
Poesia reunida: 1965-1999/Affonso Romano Sant'Anna.-- Porto Alegre:L&PM,2004.

sábado, 18 de junho de 2011

O amor - Manoel de Barros

Fazer pessoas no frasco não é fácil
Mas se eu estudar ciências eu faço.
Sendo que não é melhor do que fazer
pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
(No jirau é coisa primitiva, eu sei,
mas é bastante proveitosa)
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso para nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.













Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo:
Leya,2010.

Biografia do orvalho 2 - Manoel de Barros

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.


Barros, Manoel de,1916-
Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo:
Leya,2010.

As bênçãos - Manoel de Barros

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.


Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros - São Paulo:
Leya, 2010.

Máquina do mundo - António Gedeão

O universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.


Gedeão, António. "Máquina de fogo". Obra completa. Lisboa: Relógio D'Agua. 2006.

terça-feira, 14 de junho de 2011

O meu olhar é nítido como um girassol - Fernando Pessoa ( por Alberto Caeiro)

O meu olhar é nítido como um girassol,
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
( Pensar é estar doente dos olhos )
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama,
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins,
Richard Zenith. -São Paulo: Companhia das Letras,2001.

Quando tornar a vir a primavera - Fernando Pessoa (por Alberto Caeiro)

Quando tornar a vir a primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith.-
São Paulo: Companhia das Letras,2001.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Aniversário de Fernando Antonio Nogueira Pessoa

No dia 13 de junho de 1888 nascia Fernando Antonio Nogueira Pessoa, poeta controverso, complexo e apaixonante que eu verdadeiramente amo.

Palavras de Pórtico - Fernando Pessoa


Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso."
Quero para mim o espírito[d]esta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.



Fernando Pessoa/ O Eu Profundo e os Outros Eus (Seleção Poética). Biblioteca Manancial/2 - Companhia José Aguilar editora.

sábado, 11 de junho de 2011

O pássaro cativo - Olavo Bilac

Armas, num galho de árvore, o alçapão
E, em breve, uma avezinha descuidada,
Batendo as asas, cai na escravidão.

Dás-lhe então, por esplêndida morada,
Gaiola dourada;
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos e tudo.

Por que é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste sem cantar?

É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorjeando a sua dor exalam,
Sem que os homens os possam entender;
Se os pássaros falassem,
Talvez os teus ouvidos escutassem
Este cativo pássaro dizer:
"Não quero o teu alpiste
Gosto mais do alimento que procuro
Na mata livre em que voar me viste;
Tenho água fresca num recanto escuro
Da selva em que nasci;
Da mata entre os verdores,
Tenho frutos e flores
Sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola,
De haver perdido aquilo que perdi...
Prefiro o ninho humilde construído
De folhas secas, plácido, escondido
Entre os galhos de árvores amigas...
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
Quero saudar as pombas do arrebol!
Quero, ao cair da tarde,
Entoar minhas tristíssimas cantigas!
Por que me prendes? Solta-me, covarde!
Deus me deu por gaiola a imensidade!
Não me roubes a minha liberdade...
Quero voar! Voar!"

Essas cousas o pássaro diria,
Se pudesse falar,
E a tua alma, criança, tremeria,
Vendo tanta aflição:
E a tua mão, tremendo,
lhe abriria
A porta da prisão...



Poesia quando nasce-/ilustrações Roberto Alvarenga. - 1ª ed.- São Paulo:
Editora Melhoramentos, 2003.

Cultura - Arnaldo Antunes

O girino é o peixinho do sapo.
O silêncio é o começo do papo.

O bigode é a antena do gato.
O cavalo é pasto do carrapato.

O cabrito é o cordeiro da cabra.
O pescoço é a barriga da cobra.

O leitão é um porquinho mais novo.
A galinha é um pouquinho do ovo.

O desejo é o começo do corpo.
Engordar é tarefa do porco.

A cegonha é a girafa do ganso.
O cachorro é um lobo mais manso.

O escuro é a metade da zebra.
As raízes são as veias da seiva.

O camelo é um cavalo sem sede.
Tartaruga por dentro é parede.

O potrinho é o bezerro da égua.
A batalha é o começo da trégua.

Papagaio é um dragão miniatura.
Bactéria num meio é cultura.


Poesia quando nasce-/ ilustrações Roberto
Alvarenga. - 1ªed. - São Paulo: Editora Melhoramentos, 2003.

As duas flores - Castro Alves

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.


Unidas... Ai, quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!



Poesia quando nasce-/ilustrações Roberto Alvarenga.-1ª ed. São Paulo:
Editora Melhoramentos, 2003.

Recreio - Leo Cunha ( para José Paulo Paes)

Tem gente que teima em dizer
que criança não gosta de poesia.
Tem gente que teima em dizer
que ninguém gosta de poesia.
Tem gente que teima até
em não gostar de poesia!

Ora, não gostar de verso
é feito não gostar de circo.
Olha, não gostar de verso
é feito não gostar de pique-
esconde na hora do recreio.

Vamos brincar de bamboletras?
Vamos jogar voleitura?
Trava-línguas, adivinha,
ciranda cirandinha?
Vamos saborear sucrilhos e trocadilhos?
Balas de hortelâmpadas, à beça?
Ideias de tutti-frutti
brilhando em cima da cabeça?


Poesia quando nasce-/ ilustrações Roberto
Alvarenga. - 1ª ed.- São Paulo: Editora
Melhoramentos, 2003. (Coleção literatura em minha casa; v.1. Poesia)

Às vezes, de noite - Sérgio Caparelli

Às vezes, de noite,
acordo com muito medo
de alguém roubar os meus segredos,
às vezes, de noite.

Às vezes, de noite,
adormeço e no lume da vela
estou desperta e mais velha
às vezes, de noite.

Às vezes, de noite,
no meu sonho corre um rio
que me faz tremer de frio,
às vezes, de noite.

Às vezes, de noite,
me digo que sou boa, que sou meiga e que sou bela.
E cresci. E estou cega.
Às vezes, de noite.


Capparelli, Sergio,1947.
restos de Arco-Íris/Sergio Capparelli. - 5ª ed.
Porto Alegre: L&PM, 1977.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Aos que vão nascer - An die Nachgeborenem - Bertold Brecht

I
É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
Indica insensibilidade. Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia.

Que tempo são esses, em que
Falar de árvores é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranquilo
Não está mais ao alcance de seus amigos
necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento
Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
Me dá direito a comer a fartar.
Por acaso fui poupado. ( Se minha sorte acaba, estou perdido.)

As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem!
Mas como posso comer e beber, se
Tiro o que como ao que tem fome
E meu copo d'água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo.

Eu bem que gostaria de ser sábio.
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve.
Levar sem medo
E passar sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
É verdade, eu vivo em tempos negros.

II
À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

A comida comi entre as batalhas
Deitei-me para dormir entre os assassinos
Do amor cuidei displicente
E impaciente contemplei a natureza.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As forças eram mínimas. A meta
Estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
Quase inatingível.
Assim passou o tempo
Que nesta terra me foi dado.

III
Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos
Pensem
Quando falarem de nossas fraquezas
Também nos tempos negros
de que escaparam.

Andávamos então, trocando de países como de sandálias
Através das lutas de classes, desesperados
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto sabemos:
Também o ódio à baixeza
Deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
Torna a voz rouca. Ah, e nós
Que queríamos preparar o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos.

Mas vocês, quando chegar o momento
Do homem ser parceiro do homem
Pensem em nós
Com simpatia.


Brecht, Bertold. Poemas 1913-1956 - Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000.

sábado, 30 de abril de 2011

Pensamento - Arnaldo Antunes

Pensamento que vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.


Antunes, Arnaldo. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 2001.

Imitação das coisas - Duda Machado

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos e concentrados
- como no amor-, embora adivinhando,
e já pouco importa, que ainda
não estamos preparados.


Machado, Duda. Margem de uma onda. São Paulo: Edditora 34, 1977.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Sentir tudo de todas as maneiras - Fernando Pessoa ( Álvaro de Campos) - trecho

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.

Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ Álvaro de Campos: eição Teresa Rita Lopes.-São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Uns, com os olhos postos no passado - Fernando Pessoa (Ricardo Reis)

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto -
O dia real que vemos? No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia / [poesias de] Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Não torna ao ramo a folha que o deixou - Fernando Pessoa (Ricardo reis)

Não torna ao ramo a folha que o deixou,
Nem com seu mesmo pé se uma outra forma.
O momento, que acaba ao começar
Este, morreu p'ra sempre.
Não me promete o incerto e vão futuro
Mais do que esta repetida experiência
Da mortal sorte e a condição perdida
Das coisas e de mim.
Por isso, neste rio universal
De que sou, não uma onda, senão ondas,
Decorro inerte, sem pedido, nem
Deuses a quem o faça.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ [poesias de ] Ricardo Reis. - São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Não quero recordar nem conhecer-me - Fernando Pessoa ( Ricardo Reis)

Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos de mais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ [poesias de] Ricardo Reis - São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

domingo, 24 de abril de 2011

Errando no museu Picasso - Affonso Romano de Sant'Anna

Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.

Mas quando erra,
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com bandeirilhas na carne.

Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.

Ele erra, mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.


Poesia reunida: 1965-1999/ Affonso Romano de Sant'Anna.-Porto Alegre: L&pm,2004.

Estás partindo de mim - Affonso Romano de Sant'Anna

Estás partindo de mim
e eu pressinto que me partes,
e partindo, em ti me vais levando,
como eu que fico
e em mim vou te criando.

Tanto mais tu me despedes
e te alongas,
tanto mais em mim vou te buscando
e me alongando,
tanto mais em mim vou te compondo
e com a lembrança do teu ser
me conformando.

Estás partindo de mim
e eu pressinto:
na verdade, há muito que partias,
há muito que eu consinto
que tu partas como um mito.

Mas não és a única que partes
nem eu o único que fico:
sei que juntos e contrários
nos partimos:
- pois tanto mais nos desencontros nos revemos,
tanto mais nas despedidas consentimos.



Poesia reunida: 1965-1999/Affonso Romano de Sant'Anna.-Porto Alegre:L&PM, 2004.

Tanto mais eu te contemplo - Affonso Romano de San'tanna

Tanto mais eu te contemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio.

Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
nos meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?

Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?
Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.

E à força, de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,

pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.



Poesia reunida: 1965-1999/ Affonso Romano de Sant'Anna. Porto Alegre: L&PM,2004.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Green god - Eugénio de Andrade

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



Eugénio de Andrade/ Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudos, notas de Arnaldo Saraiva, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O sol na ilha de Poros - Jean-Pierre Lemaire

O quarto do sol
o quarto dos enamorados azuis
o quarto da noite dos tempos
Todos se comunicam
na memória da felicidade
que conserva suas cores puras
sem paredes entre as horas


Jean-Pierre Lemaire/Poemas: trad. de Júlio Castanõn Guimarães

quinta-feira, 24 de março de 2011

Sonhei tanto contigo - Robert Desnos

Sonhei tanto contigo,
andei tanto, falei tanto,
amei tanto a tua sombra,
que não me resta mais nada de ti.
Resta-me ser a sombra entre as sombras
ser cem vezes mais sombra que a sombra
ser a sombra que virá e voltará em tua vida
ensolarada.


Desnos, Robert. Domaine publique. Paris: Gallimard,1953.

Palavra Mágica - Carlos Drummond de Andrade

Certa palavra dorme na
sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a
encontro,
não desanimo
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Arte poética - Vicente Huidobro

Que o verso seja como uma chave
que abra mil portas.
Uma folha cai; algo passa voando;
que tudo quanto vejam os olhos criado seja,
e a alma de quem ouve fique tremendo.

Inventa mundos novos e cuida de tua palavra;
o adjetivo, quando não dá vida, mata.

Estamos no ciclo dos nervos.
pendura o músculo,
como lembrança, nos museus;
mas nem por isso temos menos força:
o vigor verdadeiro
reside na cabeça.

Por que cantais a rosa, oh poetas!
fazei-a florescer no poema.

Só para nós
vivem todas as coisas sob o Sol.

O poeta é um pequeno deus.


Huidobro, Vicente. Antologia poética. Org. de Hugo Montes. Madrid:Castalia,1990

Primeira luz - Giorgio Caproni

Leitosa de alvorada
nasce nas colinas,
gaguejando palavras ainda
infantis, a primeira luz.

A terra, com seu rosto
mádido de suor
abre ensonados olhos d'água
à noite que embranquece.

(São sempre os pássaros os primeiros
pensamentos do mundo).


Caproni, Giorgio. "Come un'allegoria(1932-35)". In: Bernardini Aurora Fornoni (org. e trad). Agamben comenta Caproni. Florianólis: UFSC, 2011

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Escola de Bem-te-vis

Muita gente já não acredita que existam pássaros, a não ser em gravuras ou empalhados nos museus - o que é perfeitamente natural, dado o novo aspecto da terra, que, em lugar de árvores, produz com mais abundância blocos de cimento armado. Mas ainda há pássaros, sim. Existem tantos em redor da minha casa, que até agora não tive (nem creio que venha a ter) tempo de saber seus nomes, conhecer suas cores, entender sua linguagem. Porque evidentemente os pássaros falam. Há muitos, muitos anos, no meu primeiro livro de inglês se lia: "Dizem que o sultão Mamude entendia a linguagem dos pássaros..."
Quando ouço um gorjeio nestas mangueiras e ciprestes, logo penso no sultão, e nessa linguagem que ele entendia. Fico atenta, mas não consigo traduzir nada. No entanto, bem sei que os pássaros estão conversando.
O papagaio e a arara, esses aprendem o que lhes ensinam, e falam como doutores. E há o bem-te-vi, que fala português de nascença, mas infelizmente só diz o seu próprio nome, decerto sem saber que assim se chama.
Anos e anos a fio, os bem-te-vis do meu bairro nascem, crescem, brigam falam... - depois deixam de ser ouvidos: não sei se caem nas panelas dos sibaritas, se arranjam emprego, se viajam, se tiram férias, se fazem turismo. Não sei.
Mas, enquanto andam por aqui, são pacientemente instruídos por seus pais ou professores, e parece que, tão cedo começam a voar, já vão para as aulas, ao contrário de muitas crianças que antes de irem para as aulas já estão voando.
Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas: a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos - ah! principalmente os gatos... Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só:"Bem-te-vi! Bem-te-vi",que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas.
Antigamente era assim. Agora, porém, as coisas tem mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: "Bem-te-vi!" - o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: "Te-vi!" Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. "Bem-te-vi! Bem-te-vi!", tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de "Te-vi! Te-vi! Te-vi", que deixou o próprio eco muito desconfiado.
Essa revolução durou algum tempo. A passarinhada vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos. "Bem-te-vi!", diziam estes, severos e puristas, tentando chamá-los à razão. "Te-vi! Te-vi!", gritavam os outros, galhofeiros, revoltosos, endoidecidos.
Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: "Bem-te-vi! Bem-te-vi!" - e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviam a abreviatura dos pais: "Te-vi!Te-vi!" Mas acharam muito comprido ainda. (Que tranbolho, a família) E passaram a responder, por muito favor, "Vi! Vi!" Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato...
"Bem-te-vi!", exclamam os anciãos, com sua dignidade ofendida. "Te-vi!", respondem os filhos revoltosos. E os netos, meio chochos: "Vi! Vi!"
Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudem de método. Talvez mude o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente - quem sabe? - uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis.


O que se diz e o que se entende: crônicas/ Cecília Meireles.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.