sábado, 31 de julho de 2010

Pedido da rosa sábia - Cecília Meireles

Olha-me só este instante,
só este instante:
minha linguagem é este aroma,
esta cor, esta veludosa escultura.

Falo-te de mim porque não me fiz:
apareci.

É só por um minuto.
Eu sou a tua imagem reduzida
em tempo e dimensão.

Antes de me entenderes
terei desaparecido:
e não pelo ar ou pelo chão, somente.

Morte da formiga - Cecília Meireles

Levantou-se como um cavalo furioso
e abriu no ar seus bracinhos tênues.

Menor que qualquer letra:
mais fina que qualquer fio.

E eu pensei como seria o sofrimento
naquele corpo mínimo?
Porque sempre se sofre.

E eu pensei que seria o sol que a queimava
no ardente ladrilho.

E aproximei-lhe uma gota d'água
e um grão de terra fresca.
E ela se retorceu entre a água e a terra.
E era um silêncio terrível o da sua pequenez.

Depois caiu vencida.
Menor que um cílio. Menor.
E nem ela certamente
- mas apenas eu, e por quê? -
soube da sua morte.

Alto, vasto, azul,
como era belíssimo o céu
em redor deste mundo!

O amor é o único milagre que existe - Osho

"O amor é o único milagre que existe. O amor é a escada do inferno para o céu. Aprendendo bem o amor, você aprendeu tudo. Perdendo o amor, toda a sua vida está perdida. As pessoas que me perguntam sobre Deus não estão realmente perguntando sobre Deus, mas declarando que não conheceram o que é o amor. Aquele que conheceu o amor conheceu o Amado; o amor é a percepção do Amado. Aquele que pergunta sobre a luz está simplesmente dizendo que é cego. Aquele que pergunta sobre Deus, está dizendo que seu coração não floresceu para o amor.
Deus não é para ser procurado: onde você irá procurá-lo? Ele está em toda a parte; você só tem de aprender a abrir os seus olhos do amor. Uma vez que o amor penetrar em seu coração, Deus está lá. Na emoção do amor está o Amado; na visão do amor está a visão de Deus."

Enloucrescer - Carlos Drummond de Andrade

"Enloucrescer.
Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança.De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passa debaixo de sua janela. Ponha intenção de quermesse em seus olhos e beba licor de conto de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria. Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário para fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido."

A palmeira - Cecília Meireles

Palmeira sem história,
anônima na mata
unida ao verde, a tantas
ramagens recostada
e a seu destino presa,

quando te olho recordo
uma vila distante
de amarelo crepúsculo,
onde os pássaros vinham
pousar na minha mesa;

quando te amo compreendo
que és a sombra daquela
perdida em tarde e névoa
e o amor que por ti sinto
é saudade e tristeza.

Diálogos do jardim - Cecília Meireles

Debaixo de tanto calor,
o pássaro arranjou um ramo verde e fresco,
e pôs-se a falar.

O pássaro perguntava-me:
"Lembras-te das grandes árvores,
com lágrimas douradas de resina?"

Respondi-lhe que sim, que me lembrava,
que naquele tempo ouvíramos falar em âmbar,
e queríamos fazer colares de resina:
mas em nossas mãos ela perdia a transparência.

"Lembras-te dos cajus maduros,
caindo fofamente na folhagem morta do chão?"

Respondi-lhe que sim, que ainda os via,
muito longe, amarelos e túrgidos,
às vezes, rebentados, na queda,
escorrendo, perfumosos, sumo doce.

" Lembras-te das rodelinhas douradas
que a folhagem e o sol balançavam por cima dos livros?"

Respondi-lhe que sim, e que eram livros de histórias,
e foram depois romances, e um dia poemas,
e mais tarde pensamentos difíceis...

E o passarinho perguntava:
"Lembras-te da tua voz devolvida pelo eco?"

E eu me lembrava, mas não das palavras,
só que as respostas eram sempre incompletas.

"E o recorte da montanha, no horizonte,
lembras-te como era azul e negro? E as palmeiras?
E as sebes de flores encarnadas?"

E eu me lembrava de tudo, e sentia o aroma da tarde,
e o canto das cigarras, e o lamento dos sabiás
e das rolas,
e via brilhar a bola azul do telhado, que amei tanto,
e sentia, tão doce,a minha perpétua solidão.

E perguntei ao pássaro:"Onde estavas,
para me perguntares tudo isso?
Também já viveste tanto?"

E ele me respondeu: "Não, tudo isso está no fundo dos teus olhos.
Eu só vou perguntando o que estou lendo...
E, porque o leio, canto."

Desenho quase oriental - Cecília Meireles

Uma borboleta que voa
sobre uma flor que é o seu retrato,
numa árvore,
parece que chama por ela,
parece que adeja o convite
de amarem-se.

Parece que a flor lhe responde,
que é presa, sem asas, que vive
e morre
no ramo. Parece que é triste
não ir pela brisa de amores
bem longe.

Parece que as duas se entendem,
parece que as duas deploram.
Parece.
Mas sempre há uma brisa mais forte
que leva, com asas quebradas,
as pétalas...

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Não basta abrir a janela - Fernando Pessoa

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

O destronado - Affonso Romano de Sant'Anna

Como o rei destronado
que na Babilônia
ia cortando pedaços de seu corpo
à vista de todos
até cair morto
e totalmente desamado de seu povo,
- devo ritualizar tua perda.

Devo ritualizar tua perda
e despedir-me aos solavancos
do teu/meu corpo
uma vez mais.

Por isto, careço
de outro, ainda, final encontro:
um gesto pungente
para completar, em mim,
do adeus
- o ritual.

Carta poética - Affonso Romano de Sant'Anna

Dizes que levas minhas cartas de amor
quando viajas
como se me levasses contigo.

Contigo levas o corpo
de minha letra
para me amar
continuamente
sem hiatos de aeroportos.

Amada, toma este poema,
flor oferta à luz do dia.
Enquanto não regressas,
inscrevo tua ausência
com poesia.

Além do entendimento - Affonso Romano de Sant'Anna

A essa altura
há coisas
que(ainda)
não entendo.
Por exemplo:
o amor. Faz tempo
que diante dele
me desoriento.

O amor é intempestivo,
eu sou lento.
Quando ele sopra
- estatelado -
mais pareço
um catavento.

Aprendizados - Affonso Romano de Sant'Anna

Uns aprendem a nadar
outros a dançar, tocar piano,
fazer tricô e a esperar.

Na infância cai-se
para se aprender a andar,
cai-se do cavalo e do emprego
aprendendo a viver e a cavalgar.

Em alguns aprendizados
chega-se à perfeição.

Em alguns.

No amor, não.

Tardes - Affonso Romano de Sant'Anna

Deus botou essas tardes na minha frente
para me advertir,
paralisar.
Sabe que sou fraco
e não resisto a um certo modo cromático de ser.

Deus botou essas tardes na minha frente
para me ferir,
me extasiar.
Às vezes me distraio. Deus insiste: põe
as tardes de novo em minha frente
para que eu aprenda a morrer.

Soneto de Véspera - Vinícius de Moraes

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrima terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou - fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Poema enjoadinho - Vinicius de Moraes

Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Soneto de fidelidade - Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Poema dos olhos da amada - Vinicius de Moraes

Ó minha amada
Que olhos os teus
são cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus...

Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...

Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-o Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus.

Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.

Não posso viver assim! - Fernando Pessoa

Mina-me o peito a saudade.
Haverá maior tormento,
Ou um veneno mais lento
Que turva a felicidade,
Que vence a própria vontade,
Que quasi nos mata enfim?
Este que me fere a mim
Foi causado pela sorte,
Foi cavado pela morte...
Não posso viver assim!

A luz que vem das estrelas - Fernando Pessoa

A luz que vem das estrelas,
Diz - pertence-lhes a elas?
O aroma que vem da flor,
É seu? Dize, meu amor.

Problemas vastos, meu bem,
Cada cousa em si contém.
Pensando claro se vê
Que é pouco o que a mente lê
Em cada cousa da vida,
Pois que cada cousa, enfim,
É o ponto de partida
Da estrada que não tem fim.

Perante este sonho eterno
Falar em Deus, céu, inferno...

Ah! dá nojo ver o mundo
Pensar tão pouco profundo.

Só quem puder obter a estupidez - Fernando Pessoa

Só quem puder obter a estupidez
Ou a loucura pode ser feliz.
Buscar, querer, amar... tudo isto diz
Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

A Estupidez achou sempre o que quis
No círculo banal da sua avidez;
Nunca aos loucos o engano se desfez
Com quem um falso mundo seu condiz.

Há dois males: verdade e aspiração,
E há uma forma só de os saber males -
É, vivendo-lhe o ser, saber que são

Um horror real, o outro o vazio -
Horror não menos, dois como que vales
Ao pé dum monte que ninguém subiu.

Sonhador de sonhos - Fernando Pessoa

Sonhador de sonhos,
Queres-me vender
Teus dias , risonhos
De tanto esquecer?...

Minh'alma é só mágoa
Por saber que vive...
Passo como a água,
Nunca fui ou estive.

O mundo é um sonho velado - Fernando Pessoa

O mundo é um sonho velado
Por sonhos de sonhar...
Meu coração amargurado
Para quê pensar?

Para que pensar ou crer,
Descrer, ou sorrir
De pensar, crer ou descrer
De ser ou sentir?

domingo, 25 de julho de 2010

Gaia ciência - Affonso Romano de Sant'Anna

Gosto de me iludir
pensando
que hoje amo
melhor que ontem amei.

Assim desculpo o jovem afoito
que, em mim, me antecedeu
e, generoso, encho de esperanças
o velho sábio
que amará melhor melhor que eu.

Cinco da Tarde - Affonso Romano de Sant'Anna

Estas cinco horas da tarde
jamais voltarão a acontecer.

A mulher lendo e escrevendo à mesa
enquadrada por orquídeas no jardim.
O Sol numa rajada de luz
entre cortinas e ramagens.
A cama desfolhada, possuída
num repouso de lembranças.

Leio um ensaio sobre a poetisa
que ajudei a parir.

Nunca mais estarei aqui
às cinco horas de uma tarde assim.

Na estrada, entre pinheiros,
passa, de bengala, o vizinho
que envelhece,
vai comer bolo e chá
com a vizinha pianista.

Pássaros cantando, insetos voam
e eu sinto uma paz absurda
como se essas cinco horas da tarde
fossem me transcender.

sábado, 24 de julho de 2010

Morrer de amor - Affonso Romano de Sant'Anna

Não posso dizer ao meu amor
que comigo escolheu viver:
- pare de morrer.
Nem um nem outro pode
parar de envelhecer.

Advirto aos incautos:
- não há nada de mórbido neste assunto.
Estamos apenas
morrendo de amor
-juntos.

Poética 1940 - Affonso Romano de Sant'Anna

Naquele tempo
o mundo cabia em frases
que não comportavam ironias.
Estava tudo decidido:
o mundo era uma rosa
em clara geometria.
O mundo era uma rosa
e o povo
-poesia.

Amor e medo - Affonso Romano de Sant'Anna

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Instante de amor - Affonso Romano de Sant'Anna

Me ame apenas
no preciso instante
em que me amas.

Nem antes
nem depois,
O corpo é forte.

Me ame apenas
no imenso instante
em que te amo.
O antes é nada
e o depois é morte.

Separação - Affonso Romano de Sant'Anna

Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos
das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.

O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos, remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se,
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.

Edital - Affonso Romano de Sant'Anna

Por este instrumento faço saber
que é verdade
o que de mim dizem.

É verdade o que alardeiam os inimigos
e os amigos enfatizam.
Sou tudo o que me pespegam.

Quando me acanalham, é verdade,
e é verdade
-quando me embalam

Jovem, indignado,
tentei com engenho & arte
separar do trigo
a outra parte.
Já não consigo. Renegar o joio
é ter o trigo empobrecido.

Quando me atiram pedras, é justo.
Quando me atiram estrelas, quem sabe?
Não vou de mim, de vós, viver a contrapelo.
Sou como Ulisses
na ida e no regresso:
a soma dos descaminhos
a contradição em progresso.

Dificuldades manuais - Affonso Romano de Sant'Anna

Sempre tive dificuldades em escrever
à mão.
Com a esquerda nunca
pude executar bem as coisas
que me pedia.
A firmeza da direita nunca tive.
Trêmula se me mostra às vezes.
Com a idade não poderei tomar sequer uma xícara
de café.
Mas posso dar ainda dar um murro na mesa
ante a atual situação ou sobraçar um montão de rosas.
Bem, neste caso, quem treme
-é o coração.

Assombros - Affonso Romano de Sant'Anna

À vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
Há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

Certas coisas - Affonso Romano de Sant'Anna

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Muitos poemas perdi
pensando:"depois escrevo",
"agora estou almoçando"
ou "consertando a porta".
Assim, adiei-perdi
o melhor? de mim.

Certas coisas
não se podem deixar para depois,
e nisto incluo: frutos no galho,
mudanças sociais,
certas coxas e bocas
e esta manhã que se esvai.

certas coisas
não se podem deixar para depois.

O amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia.
O desejo sabe o que quer,
detesta burocracia.

Feito depois, o amor
é murcha lembrança
do que, não-sendo, seria.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Como o amor e as pessoas,
não se pode recuperar
- a poesia.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Nós XXlll - Guilherme de Almeida

Eu não fui mais que um cético suicida
que passou, pelo mundo, indiferente,
a passos leves, esbanjando a vida
prodigamente, perdulariamente.

"É um pobre moço! Um doido! Nem duvida
dessa mulher!" - dizia toda gente.
Mas eu passava de cabeça erguida
e te levava a vida de presente!

Dei-te quanto pediste. Ingênua e nua,
minha alma toda ficou sendo outrora
tua, só tua, unicamente tua.

Quis dar-te mais: tu nada mais quiseste!
Pelo bem que te fiz, padeço agora
a saudade do mal que me fizeste.

A perfeição - Clarice Lispector

O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

O nascimento do prazer (trecho) - Clarice Lispector

O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar-se inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.

Seguir a força maior - Clarice Lispector

É determinismo, sim. Mas seguindo o próprio determinismo é que se é livre. Prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio. Há uma grande liberdade em se ter um destino. Este é o nosso livre-arbítrio.

Uma revolta - Clarice Lispector

Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

...poesias, a poesia é

... poesias, a poesia é - Manoel de Barros

- é como a boca
dos ventos
na harpa

nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite

raiz entrando
em orvalhos...

os silêncios sem poro

floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece
na boca

cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém

o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando am álacres
os pássaros

- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...

domingo, 18 de julho de 2010

Os livros não mudam o mundo - Mario Quintana

Os livros não mudam o mundo.
Quem muda o mundo são as pessoas.
Os livros só mudam as pessoas.

O mar de manhã - Clarice Lispector

O mar. Tenho deixado de ir ao mar por indolência. E também por impaciência com o ritual necessário: barraca, areia colada por toda a pele. E mesmo não sei ir ao mar sem molhar cabelos. E, chegando em casa, tem-se que tirar o sal.
Mas um dia vou falar do mar de um modo melhor. Aliás, acho que vou começar um pouquinho agora. Vou falar do cheiro do mar que às vezes me deixa tonta.
Tenho uma conhecida que mora na Zona Norte, o que não justifica nunca ter entrado no mar. Fiquei pasma quando me contou. E prometi que ela viria em casa para entrarmos no mar às seis da manhã. Por que? Porque é a hora da grande solidão do mar. Como explicar que o mar é o nosso berço materno mas que seu cheiro seja todo masculino; no entanto berço materno? Talvez se trate da fusão perfeita do masculino com o feminino. Às seis horas da manhã as espumas são mais brancas.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Por medo do desconhecido (trecho) - Clarice LIspector

Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor por essa vida mortal a assassinava docemente aos poucos. E o que é que se faz quando se fica feliz? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda que já está começando a me doer como uma angústia e como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, ela não queria ser feliz. Por medo de entrar num terreno desconhecido. Preferia a mediocridade de uma vida que ela conhecia. Depois procurou rir para disfarçar a terrível e fatal escolha. E pensou com falso ar de brincadeira: "Ser feliz? Deus dá nozes a quem não tem dentes." Mas não conseguiu achar graça. Estava triste, pensativa. Ia voltar para a morte diária.

Viver - Clarice Lispector

Ele teve a sensação de ser. Não poderia explicar, tão profundo,nítido e largo que era. A sensação de ser era uma visão aguda, calma e instantânea de ser o próprio representante da vida e da morte.Então, ele não quis dormir, para não perder a sensação da vida.

Poesia - Carlos Drummond de Andrade

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda a minha vida inteira.

Para além da curva da estrada - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva.
Só olho para a estrada antes da curva.
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes
da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro
lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde
estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra
parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para
além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá
chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes
da curva
Há estrada sem curva nenhuma.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O livro desconhecido - Clarice Lispector

    Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: "Mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!"

As sete maravilhas de cada mundo - Clarice Lispector

     Tenho uma amiga chamada Azaléia, que simplesmente gosta de viver. Viver sem adjetivos. É muito doente de corpo, mas seus risos são claros e constantes. Sua vida é difícil, mas é sua.
     Um dia desses me disse que cada pessoa tinha em seu mundo sete maravilhas. Quais? Dependia da pessoa.
     Ela então resolveu classificar as sete maravilhas de seu mundo.
     Primeira: ter nascido. Ter nascido é um dom, existir, digo eu, é um milagre.
     Segunda: seus cinco sentidos que incluem em forte dose o sexto. Com eles ela toca e sente e ouve e se comunica e tem prazer e experimenta a dor.
     Terceira: sua capacidade de amar. Através dessa capacidade,
menos comum do que se pensa, ela está sempre repleta de amor por alguns e por muitos, o que lhe alarga o peito.
     Quarta: sua intuição. A intuição alcança-lhe o que o raciocínio não toca e que os sentidos não percebem.
     Quinta: sua inteligência. Considera-se uma privilegiada por entender. Seu raciocínio é agudo e eficaz.
     Sexta: a harmonia. Conseguiu-a através de seus esforços, e realmente ela é toda harmoniosa, em relação ao mundo em geral, e a seu próprio mundo.
     Sétima: a morte. Ela crê, teosoficamente, que depois da morte a alma se ancarna em outro corpo, e tudo começa de novo, com a alegria das sete maravilhas renovadas.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Que viva hoje - Clarice Lispector

... Sem nenhum acontecimento me provocando, sem nenhuma expectativa, de tarde, esta tarde, eu, aplicando-me na caligrafia como uma criança de escola, eu, também uma das freiras que costuram, em labor de abelha a fio de ouro: Viva Hoje.

Conversa puxa conversa à toa - Clarice Lispector

     Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem  minha mesmo.
     Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados  em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa - continuei com meu café - se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em "milhares de anos à nossa frente", deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
     Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se aloja um "eu". Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de "eu"? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um "eu".

A vida é sobrenatural - Clarice Lispector

     Refletindo um pouco, cheguei à ligeiramente assustadora certeza de que os pensamentos são tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte. Simplesmente descobri de súbito que pensar não é natural. Depois refleti um pouco mais e descobri que não tenho um dia-a-dia. É uma vida-a-vida. E que a vida é sobrenatural. 

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O vestido branco - Clarice Lispector

     Acordei de madrugada desejando ter um vestido branco. E seria de gaze. Era um desejo intenso e lúcido. Acho que era a minha inocência que nunca parou. Alguns, bem sei, já até me disseram, me acham perigosa.. Mas também sou inocente. A vontade de me vestir de branco foi o que sempre me salvou. Sei, e talvez só eu e alguns saibam, que se tenho perigo tenho também uma pureza. E ela só é perigosa para quem tem perigo dentro de si. A pureza de que falo é límpida: até as coisas ruins a gente aceita. E tem um gosto de vestido branco de gaze. Talvez eu nunca venha a tê-lo, mas é como se tivesse, de tal modo se aprende a viver com o que tanto falta. Também quero um vestido preto porque me deixa mais clara e faz minha pureza sobressair. É mesmo pureza? O que é primitivo é pureza. O que é espontâneo é pureza. O que é ruim é pureza? Não sei, sei que às vezes a raiz do que é ruim é uma pureza que não pôde ser.
     Acordei de madrugada com tanta intensidade por um vestido branco  de gaze, que abri meu guarda-roupa. Tinha um branco, de pano grosso e decote arredondado. Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.
     E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.