sábado, 24 de abril de 2010

De resto eu não sonho... - Fernando Pessoa

De resto eu não sonho, eu não vivo; sonho a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante acção, nunca desaparecem o [] do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmos-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida - seja isso real ou ilusão - é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo  -  ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é []
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o vêem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.

Saber não ter ilusões... - Fernando Pessoa

Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos.
Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstratas, e as abstratas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e se confunde.

Minha alma é uma orquestra oculta... - Fernando Pessoa

"Minha alma  é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia."

Autopsicografia - Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Navegar é preciso - Fernando Pessoa

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
Ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Homem, Mulher - dois inimigos...

Homem, mulher - dois inimigos,
Eternamente em falsa paz
Prazeres mútuos e perigos...
Quanto ódio e dor o amor nos traz!

A vencedora e o vencido
A mesma dor dupla vivemos
Que vale à alma termos sido
Vós não ganhais e nós perdemos.

Às vezes, em sonho triste... - Fernando Pessoa

Às vezes em sonho triste,
Aos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

Poente - Fernando Pessoa

A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.

Não me toques, fales, olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...

Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te,
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.

Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,

Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali,iriado
De ti, mancha nesta calma

Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Escrever é esquecer... - Fernando Pessoa (por Bernardo Soares)

Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas ( como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Não o amor, mas os arredores é que vale a pena... - Fernando pessoa ( por Bernardo Soares)

Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...

A repressão do amor ilumina os fenômenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento. Agir compensa mas confunde. Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a ideia atinge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.

domingo, 18 de abril de 2010

A boneca - Olavo Bilac

Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: "É minha!"
- É minha!" a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio.
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola a à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca...

sábado, 17 de abril de 2010

Tem tudo a ver - Elias José

A poesia
tem tudo a ver
com tua dor e alegrias,
com as cores, as formas, os cheiros,
os sabores e a música do mundo.

A poesia
tem tudo a ver
com o sorriso da criança,
o diálogo dos namorados,
as lágrimas diante da morte,
os olhos pedindo pão.

A poesia
tem tudo a ver
com a plumagem, o vôo e o canto,
a veloz acrobacia dos peixes,
as cores todas do arco-íris,
o ritmo dos rios e cachoeiras,
o brilho da lua, do sol, das estrelas,
a explosão em verde, em flores e frutos.

A poesia
- é só abrir os olhos e ver -
tem tudo a ver
com tudo. 

Quem diz que amor é falso... - Luis de Camões

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deuses, odioso.
Se males faz Amor, em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quando podia.
Mas todas suas iras são de Amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria

Eu cantarei de amor ...- Luis de Camões

Eu cantarei de amor  tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia a pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contertar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.

Soneto- Mudam-se os tempos... - Luis de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos qualidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Soneto- Tempo é já que minha confiança... - Camões

Tempo é já que minha confiança
Se desça de uma falsa opinião;
Mas o amor não se rege por razão;
Não posso perder logo a esperança.
A vida sim; que uma áspera mudança
Não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho salvação?
Sim, mas quem a deseja não a alcança.
Forçado é, logo, que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que não consente
Quietação numa alma que é cativa!
Se hei de viver, enfim, forçadamente,
Para que quero a glória fugitiva
De uma esperança vã que me atormente?

domingo, 11 de abril de 2010

Uma flor voava - Cecília Meireles

Uma flor voava.
Por mais que pareça impossível,
uma flor voava.
Uma flor amarela ia voando,
e levava ao lado o seu botão fechado.
Parecia uma jovem graciosa
com sua bolsinha no braço.
Voava a flor amarela,
no ar indefinido.

E nuns troncos imensos,
muito grossos, muito altos,
uns troncos cheios de crepúsculo,
como colunas do céu,
sentinelas da vida,
nuns troncos muito escuros
iam pousando enormes borboletas flácidas,
amarelas e pretas,
que decerto pousavam para sempre,
sem rumo nem poder,
amarelas e pretas, muito sinistras,
muito flácidas, muito grandes.

E a pequena flor amarela voava,
solta, levíssima,
por um rumo secreto,
de alma evadida.

Epigrama - Cecília Meireles

Narciso, foste caluniado pelos homens,
por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor,
a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso.

Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda:
sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava
gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,

a estátua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava,
florindo para sempre, com o seu efêmero sorriso...

Epigrama número 10 - Cecília Meireles

A minha vida se resume,
desconhecida e transitória,
em contornar teu pensamento,

sem levar dessa trajetória
nem esse prêmio de perfume
que as flores concedem ao vento.

No fim tu hás de ver...- Mario Quintana

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves
são as únicas que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo, o carinho no momento
preciso, o folhear de um livro, o cheiro que um
dia teve o próprio vento...

O futuro é uma espécie de banco... - Mario Quintana

O futuro é uma espécie de banco, ao qual
vamos remetendo, um por um, os cheques de
nossas esperanças. Ora! Não é possível que
todos os cheques sejam sem fundos.

Epitáfio - Vinícius de Moraes

Aqui jaz o Sol Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde.

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possui a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.

Soneto de um domingo - Vinícius de Moraes

Em casa há muita paz por um domingo assim.
A mulher dorme, os filhos brincam, a chuva cai...
Esqueço de quem sou para sentir-me pai
E ouço na sala, num silêncio ermo e sem fim,

Um relógio bater, e outro dentro de mim...
Olho o jardim úmido e agreste: isso distrai
Vê-lo, feroz, florir mesmo onde o sol não vai
A despeito do vento e da terra ruim.

Na verdade é o infinito essa casa pequena
Que me amortalha o sonho e abriga a desventura
E a mão de uma mulher fez simples, pura e amena.

Deus que és pai como eu e a estimas, porventura:
Quando for minha vez, dá-me que eu vá sem pena
Levando apenas esse pouco que não dura.

Soneto do amor como um rio - Vinícius de Moraes

Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.

Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.

Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo

E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.

As pessoas sem imaginação... - Mario Quintana

As pessoas sem imaginação podem ter tido
as mais imprevistas aventuras, podem ter
visitado as terras mais estranhas... Nada
lhes sobrou. Uma vida não basta ser vivida:
também precisa ser sonhada.

sábado, 10 de abril de 2010

Soneto de contrição - Vinícius de Moraes

Eu te amo, Maria, te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.

Amor sem explicação - Affonso Romano de Sant'anna

De uma gostei,
pensando:
- são os olhos.
A outra amei,
julgando:
-são as pernas.
De outras,
os cabelos,
a boca,
o endiabrado sexo.
Assim, a fonte do amor
ia, em vão, localizando.
Agora estou perplexo:
olho teus olhos,
tuas coxas,
tua boca,
teus cabelos,
teu etc.

-De onde a sedução?
Desarvorado desabo
no teu corpo,
ponho-me a amar, estupefato,
dispensando explicação.

Com-paixão - Affonso Romano de Sant'anna

Vou pela rua
estraçalhado de amor
numa deslavada paixão
quando, do outro lado, vejo
o velho poeta experimentado
a quem
desamparado
indago:
- Então. poeta, não vai ter fim
do amor, o nosso aprendizado?
- Até quando e quantas vezes
amargaremos, na paixão,
o mel crucificado?

Ele me olha assim de lado, além do horizonte
que em mim troveja,
e para meu desespero, não me consola
antes, confessa
sentir do meu amor
- enorme inveja.

Limites do amor - Affonso Romano de Sant'anna

Condenado estou a te amar nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeças de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites de vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, sem empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.

Presente - Affonso Romano de Sant'anna

O que te dar neste dia?

O que te daria eu ontem
quando não te conhecia?
E amanhã, o que darei
se hoje não te dei
o que devia?

O que te dou é apenas
sombra do que querias.
Dou-te prosa, e o desejo
era dar-te poesia.

Amor e medo - Affonso Romano de Sant'anna

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.

Versificação - Affonso Romano de San'tanna

Andando pelas ruas, te amando,
versificando vou a tua ausência:
vou versiprosando reminiscências
e o vento me buliversando
num vice-versa vou versilembrando
vou versivivendo e diversificando
e meu amor ao vento vou
disseminando.

Morrer, amar - Affonso Romano de Sant'Anna

- Imperativo, só o amor.
Algo a acrescentar?
- Sim, há outro: morrer.
- Mas morrer,
faz parte do amar.

Em Veneza - Affonso Romano de San'tanna

Em Veneza
estivemos
Goethe
Thomas Mann
Byron
Casanova
Vivaldi
minha mulher
e eu.

Não pudemos, infelizmente,
levar as crianças.
De Goethe
e dos demais, sabe a \história.
De nosso amor em Veneza, sabemos
eu
e minha mulher.

E isto nos dá um certo sabor de glória.

Amor e ódio - Affonso Romano de Sant'anna

Amor, te adeio
pelo que me fazes sofrer,
te odeio
porque não paro
de te querer,
te odeio porque sofro,
e, vivo, morro,
te odeio porque
em ti naufrago
quando era de ti
que tinha que vir
o meu socorro.

A um passarinho - Vinícius de Moraes

Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui!

Soneto do amor total - Vinícius de Moraes

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito  e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Poética - Vinícius de Moraes

De manhã ecureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

Anfiguri - Vinicius de Moraes

Aquilo que eu ouso
Não é o que eu quero
Eu quero o repouso
Do que não espero.

Não quero o que tenho
Pelo que custou
Não sei de onde venho
Sei para onde vou.

Homem, sou fera
Poeta, sou louco
Amante, sou pai.

Vida, quem me dera...
Amor, dura pouco...
Poesia, ai!...

Estâncias - Fagundes Varela

O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mistério,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo império.

O que eu adoro em ti não são teus lábios
Onde perpétua juventude mora,
E encerram mais perfumes do que os vales
Por entre as pompas festivais d'aurora.

O que eu adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o mármor descorara,
E ao contemplar a esplêndida harmonia
Fídias o mestre seu cinzel quebrara.

O que eu adoro em ti não é teu colo
Mais belo que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asilo
Aonde o gênio das paixões habita.

O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo duma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem.

O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.

São as palavras de bondade infinda
Que sabes murmurar aos que padecem,
Os carinhos ingênuos de teus olhos
Onde celestes gozos transparecem!...

Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me o pensar além dos mundos
Quando abaixando as pálpebras te calas.

E por isso em meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de incenso am aras santas,
E das turbas solícitas no meio
Também contrito hei te beijado as plantas.

E como és linda assim! Chamas divinas
Cercam-te as faces plácidas e belas,
Um longo manto pende-te dos ombros
Salpicado de nítidas estrelas!

Na douda pira de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...
Tinhas nos olhos o perdão somente!

Sinfonia para pressa e presságio - Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.



Eis a voz, eis o deus, eis a fala,

eis que a luz se acendeu na casa

e não cabe mais na sala.







LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Canção - A Norman Fraser - Cecília Meireles

Vela teu rosto, formosa,
que eu sou um homem do mar.
Que há de fazer de uma rosa
quem vive de navegar?
- se qualquer vento a desfolha,
qualquer sol a faz secar,
se o deus dos mares não olha
por quem se distrai a amar?

Pela grande água perdida,
anda, barca sem amor!
Cada qual tem sua vida:
uns, de deserto, uns, de flor.
Vela teu rosto, formosa,
que eu sou um homem do mar.
Poupa ao teu cetim de rosa
o sal que ajudo a formar...

Os dias felizes - Cecília Meireles

Os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros:
viajam nas nuvens,
correm nas águas,
desmancham-se na areia.

Todas as palavras são inúteis,
desde que se olha para o céu.

A doçura maior da vida
flui na luz do sol,
quando se está em silêncio.

Até os urubus são belos,
no largo círculo dos dias sossegados.

Apenas entristece um pouco
este ovo azul que as crianças apedrejaram:

formigas ávidas devoram
a albumina do pássaro frustrado.

Caminhávamos devagar,
ao longo desses dias felizes,
pensando que a Inteligência
era uma sombra da Beleza.

Eu mandava rezar o réquiem mais profundo... - Mario Quintana

Eu mandava rezar o requiém mais profundo
Não só pelos meus
Mas por todos os poemas inválidos
que se arrastam pelo mundo
E cuja comovedora beleza
ultrapassa a dos outros
Porque está, antes e depois de  tudo,
No seu inatingível anseio de beleza!

Canção mínima - Cecília Meireles

No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.

Passagem da noite - Carlos Drummond de Andrade

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
( bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

Vivo quotidianamente - Paulo Bomfim

,
Vivo quotidianamente
O último dia do mundo:
Pedra, árvore e bicho,
Amo com minha transparência,
Sofro em meus sentidos fustigados,
Adormeço m meus gestos primitivos;
Livre, seria o vento,
A água da  montanha,
O lobo da floresta.
Prisioneiro, sou apenas
O homem que se despede do mundo,
E volta para o mundo.

Basta de ser o outro - Paulo Bomfim

Basta de ser o outro... O herdeiro da terra,
O neto de seus avós!
Basta de ser
O que leu
E o que ouviu...
À terra devolvo
O cálcio, o ferro, o fósforo;
À nuvem devolvo a água rubra,
Aos mortos,
As angústias herdadas,
Aos vivos
Os gestos e as palavras recebidas...
Basta de ser o outro,
Colcha de retalhos alheios,
Cobrindo um frio verdadeiro.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Para umas noites que andam fazendo - Paulo Leminski

Deixe eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem

Quem sabe a lua lua
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém

Deixa ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém.

Separação - Affonso Romano de Sant'nna

Separação

Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo

Ah, sim, a velha poesia... - Mario Quintana

Poesia, a minha velha amiga...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma...
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo lá fora, os grilos?
Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.

Entrego-lhes grilos aos milhões um lápis verde um retrato
amarelecido um velho  ovo de costura os teus pecados
as reivindicações as explicações- menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosóes de cólera
o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos...

Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que
parece que nada tem a ver com os ingredientes mas que
tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.

Retrato do poeta na idade madura - Mario Quintana

A minha alma era uma paisagem hirsuta:
cactos, palmas híspidas,
estranhas flores que atemorizavam (seriam aranhas
carnívoras?) parecia
um texto obscuro com pontuação excessiva;
tudo porque me estavam apontando alguns fios de barba;
e cada fio era uma baioneta calada contra o mundo:

tu
com
a graça aérea de um helicóptero ou de uma libélula
soubeste achar - naquilo- onde o campo de pouso,
soubeste ouvir onde cantava
pura
a face oculta...

Só tu soubeste achar-me...e te foste!

Eu escrevi um poema triste - Mario Quintana

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Canção de Domingo - Mario Quintana

Que dança que não se dança?
Que trança não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi um grito de criança.

Que canto que não se canta?
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo Aprendiz.

O céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!

Mario Quintana

Canção de preferência - Ferreira Gullar

Não quero teus seios túmidos
de desejos maternais.
Se teus seios são redondos,
Há muitos outros iguais.

Não quero teus lábios úmidos
(beijos, carícias, corais).
Se teus lábios são vermelhos
existem lábios iguais.

Não desejo teus cabelos
-lembranças de vendavais-
Se teus cabelos são belos,
sei de cabelos iguais.

Não, não desejo teu corpo
de contornos sugestivos,
de braços, de tudo o mais...

Só quero teus olhos-teus
olhos sem adjetivos.
-teus olhos originais!

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Feminina - Mario de Sá-Carneiro

Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar.
Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto-
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...

Sujeito indireto - Paulo Leminski

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.

A vida é sonho - Calderón de la Barca ( monólogo em primeira jornada)

Abre-se a porta e aparece Segismundo, acorrentado e vestido de peles. Há luz na torre.

Segismundo- Ai, mísero de mim! Ai, infeliz
Descobrir, oh Deus, pretendo,
já que me tratas assim
que delito cometi
fatal, contra ti, nascendo.
Mas eu nasci, e compreendo
que o crime foi cometido
pois o delito maior
do homem é ter nascido.
Só quereria saber
se em algo mais te ofendi
pra me castigares mais.
Não nasceram os demais?
Então, se os outros nasceram

que privilégio tiveram
que eu não tive jamais?
Nasce o pássaro dourado,
jóia de tanta beleza
e é flor de pluma e riqueza
ou bem ramalhete alado
quando o céu desanuviado
corta com velocidade
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
e porque, tendo mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e muito cedo
a humana necessidade
ensina-lhe a crueldade,
monstro de seu labirinto;
e eu, com melhor instinto
tenho menos liberdade?

Nasce o peixe e não respira,
aborto de ovas e lamas,
é apenas barco de escamas
quando nas ondas se mira
e por toda parte gira
medindo a imensidade
de sua capacidade;
tanto lhe dá sul ou norte.
E eu que sei da minha sorte
tenho menos liberdade?
Nasce o regato, serpente
que entre flores se desata

e como cobra de prata
entre as flores se distende
celebrando a majestade
do campo aberto à fugida.
Por que eu, tendo mais vida,
tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão,
num vulcão todo transfeito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração;
que lei, justiça ou razão
recusar aos homens sabe
privilégio tão suave,
licença tão essencial
dada por Deus ao cristal,
a um peixe,  um bruto e a uma ave?

Soneto V - Paulo Bomfim

Alquimia do verbo. Em minha mente
Recriam-se palavras na hora vária,
A poesia se torna necessária
E as flores rememoram a semente.

É preciso que exista novamente
A aventura distante e temerária
De em ouro transformar a dor precária
E em nós deixar correr a lava ardente.

Que uma emoção profunda e mineral
Corra nos veios desta carne astral
E encontre em mim aquilo que procura.

Na paisagem que for, já sou nascido:
Nas formas criarei o elo perdido,
e, em lucidez, serei minha loucura.

Soneto II - Paulo Bomfim

O livro que hoje escrevo foi escrito
Em outro plano estático e diverso,
Sei que morro no fim de cada verso
E renasço no início de outro mito.

Em cada letra tinta de infinito
Há um diálogo mudo que converso
Com nebulosas de meu universo
Onde nasceu a página que dito.

Sei que sou neste instante o que já fui,
E aquilo que recebo agora flui
De um campo superior onde me deito.

Durmo além, nessa plaga que recordo:
Só escrevo neste plano onde hoje acordo,
Aquilo que ainda sonho no outro leito.

Soneto l - Paulo Bomfim

No ramo a flor será sempre segredo
Moldando realidades no vazio,
Caminho de perfume, rosa e estio,
Crescendo além dos roseirais do medo.

História das raízes sem enredo...
Rolam frases de terra pelo rio,
As consoantes de luz tremem de frio
E as vogais orvalhadas morrem cedo.

No ramo a flor será sempre futuro,
Haste e corola nos confins do sonho,
Marcando de infinito a cor do muro...

Sempre a cor sobre a senda debruçada,
E o perfume crescendo onde reponho
O sentido da flor despetalada.

A Vida - Paulo Bomfim

Sonhei existir
Quando o universo circulava ainda
No sangue dos deuses.
Em mim criei a forma
E fui árvore,
Idealizei o mar
E fui peixe,
Aspirei a nuvem
E fui pássaro.
Na boca dos oráculos
Sou a palavra sagrada
Que brota da terra,
No corpo dos amantes
A semente que nasce do beijo.
Expirada pelos deuses
Trouxe o formato de seus corpos múltiplos;
Agora sou o ar divino
Formando realidade,
Impulso gerando impulso.
Retorno aos pulmões da noite
Com rostos, árvores e oceanos gravados em mim:
- Nos caminhos do sangue, toco-me de eternidade.