Todas as crianças amanheceram ontem preocupadas com o que iam encontrar nos sapatos. E, como todos sabem, apesar de a data celebrar o nascimento de um dos grandes defensores da igualdade humana, os resultados verificados na prova prática dos sapatos foram os mais desiguais possível.
Não é isso que vamos pretender resolver aqui, embora acreditemos que a obra da educação tem horizontes infinitos, e esse é um dos problemas que ela está incumbida de pôr nos devidos termos.
Vamos considerar apenas essa história do Papai Noel, personagem maravilhoso que entra invisível no quarto das crianças para lhes pôr presentes nos sapatos.
Se estudarmos o caso, como recomenda Piaget, na sua verificação das representações infantis, acompanhando e favorecendo a revelação desejada sem a sugerir, para não a viciar, observaremos que as crianças não possuem conceito definido acerca do personagem fabuloso da noite de Natal. À alegria turbulenta e absorvente dos brinquedos a receber, ou recebidos, associam apenas a imagem convencional do velho friorento, de roupa vermelha orlada de arminho, barba branca, saco às costas, que as revistas e os jornais reproduzem, e a família mostra nos anúncios, sorrindo com malícia da inocência dos pequeninos.
Eu creio que o território da imaginação infantil tem uma localização à parte, nas suas faculdades. Está isento de consequências práticas, como se as imaginárias estivessem previamente a salvo de interferências da realidade e do contato com elas. Assim, as histórias maravilhosas parece-me que se acumulam, junto com os sonhos e as visões indefinidas da criança, uma região isolada da sua vida interior, não são absorvidas do mesmo modo que os fatos concretos; referem-se a interesses de outra espécie e não correspondem a uma atividade exterior. Por isso, também, é que, através do meu convívio com as crianças, inclino-me a supor que a ficção do Papai Noel é, para a infância , de natureza vaga e imprecisa, como que diluída numa generalização, e dissipada facilmente pela realidade nítida dos brinquedos. As crianças até cinco ou seis anos não tem preocupação da existência desse personagem, aceitam-no como um nome, uma palavra, - como os nomes dos meses e dos dias.
Avanço isto com a máxima precaução: e gostaria que mães e professoras procurassem interpretar bem a noção de seus filhos e alunos, a esse respeito.
Mas, depois dos seis anos, nos dias de hoje, dificilmente uma criança acredita no personagem misterioso do Natal. E, quando as assalta a primeira dúvida, correm ao papai e à mamãe para lhes perguntarem a verdade. Aí é que se comete o erro lamentável. Porque todos os pais estão convencidos - e com as melhores intenções - de que fazem bem à criança dizendo-lhes que existe esse homem sobrenatural. Muitos, eu bem sei que já não querem dizer a verdade porque tem pena de arrancar da criança o que eles supõem ser uma deliciosa ilusão, uma autêntica forma de felicidade - quando nunca se detiveram a analisar como é que funciona a alma infantil e a repercussão interior dessas coisas!
Outros sustentam a ficção com alegria, certos de que estão agindo muito normalmente, como todo o mundo faz...(O conforto da rotina...)
Dá-se, então, o seguinte: ou dizem a verdade à criança, ou ela malgrado o segredo, adivinha-a. Mas, de qualquer das duas maneiras, a criança compreende subitamente: que se pode dizer a alguém uma coisa que não é verdadeira...Que se pode alimentar essa falsidade anos a fio, repetidas vezes, com gravidade e convicção...Que os pais, os parentes, os amigos mais íntimos e mais queridos, isto é, todos aqueles em que ela confia, a quem se abandona, com a sua inocência e a sua pureza são os mesmos que sustentam essas coisas mentirosas...
Essa é que é a grande desilusão das crianças no dia que descobrem a invenção do Papai Noel...Não é a tristeza de perderem uma coisa maravilhosa...E, aliás, há coisas realmente maravilhosas, insondáveis, que se podem dar à criança, se a questão é de coisas sutis... - o movimento dos mundos, a fecundidade da terra, as origens da vida, as cores, todas as leis físicas.
O desencanto, o mudo desencanto dos olhos das crianças que sabem da verdade do Papai Noel é a amargura do contato com os homens, uma presciência da deformação da vida, uma tristeza de ter sido assunto de mofa...Uma consciência de humilhação, e um sentimento de desconfiança...Esse é o ruim presente que os pais colocam nos sapatinhos dos filhos...
(Rio de Janeiro, Diário de Notícias,26 de Dezembro de 1930)
FEIRA DO LIVRO - PARTE 2
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