domingo, 10 de outubro de 2010

Falar - Ferreira Gullar

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

A propósito do nada - Ferreira Gullar

sou
para o outro
este corpo esta
voz
sou o que digo
e faço
enquanto passo

mas
para mim
só sou
se penso que sou
enfim
se sou
a consciência
de mim

e quando
vinda a morte
ela se apague
serei o que alguém acaso
salve
do olvido

já que
para mim
(lume apagado)
nunca terei existido

Flagrante - Ferreira Gullar

o meu gato
na cadeira
se coça

corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno

a manhã clara canta na janela

estou eterno

Doída alegria - Ferreira Gullar

Durante anos
foi a minha constante companhia
aonde eu estava
ele vinha
e ronronando
em meu colo se acolhia

Até que um dia...

Faz anos já que a casa está vazia

Mas eis que
inesperado
ele de novo chega
e se deita a meu lado

Não me atrevo
a olhá-lo
pois é melhor não vê-lo
que não vê-lo

Nada pergunto
apenas vivo
a doída ilusão
de tê-lo junto

O som - Ferreira Gullar

o som é da Terra
não há nenhuma música das esferas
como pensou Aristóteles

música barulho
o trepidar cristalino
da água
sob as folhas
é coisa terrestre

o cosmo é um vastíssimo silêncio
de bilhões e bilhões de séculos

nenhum ruído
as estrelas são imensas explosões mudas
um desatino

a matéria estelar
(a explodir)
é silêncio
e energia

Para outros ouvidos talvez
poderia ser o universo
um insuportável barulho;
não para os nossos
terrenos

Viver na Terra é ouvir
entre outras vozes
o marulho
do mar salgado e azul
ouvir a ventania a rasgar-se nos galhos
antes do temporal

só aqui
neste planeta é que
se pode escutar teu límpido gorjeio,
passarinho,
pequenino cantor
da praça do Lido.

A estrela - Ferreira Gullar

Gatinho, meu amigo,
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
coberto de oceanos e montanhas
é menos que um grão de poeira
se comparado a uma delas


Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
querido amigo,
e esses teus olhos azul-safira
com que me fitas

O espaço - Ferreira Gullar

não há espaços iguais

o espaço
entre o núcleo
do átomo
e os eléctrons
nada tem a ver
com o espaço
entre o sol
e os planetas
nem com o espaço
entre
minha mesa de jantar
e as paredes em volta

não há espaço vazio
cada espaço
é feito
dos corpos que estão
nele
que o deformam e o formam
é feito
de suas energias
e cargas elétricas
ou afetos

Dentro - Ferreira Gullar

"O um é um e não é dois"
Parménides, de Platão

estamos dentro de um dentro
que não tem fora

e não tem fora porque
o dentro é tudo o que há

e por ser tudo
é o todo:
tem tudo dentro de si

Até mesmo o fora se,
por hipótese,
se admitisse existir

O que se foi - Ferreira Gullar

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

Toada à toa - Ferreira Gullar

A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.

Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero -
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Soneto a quatro mãos - Vinícius de Moraes com Paulo Mendes Campos

Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-se escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

Soneto de criação - Vinícius de Moraes

Deus te fez numa forma pequenina
De uma argila bem doce e bem morena
Deu-te uns olhos minúsculos de china
Que parecem ter sempre um olhar de pena.

Banhou-te o corpo numa fonte fina
Entre os rubores de uma aurora amena
E por criar-te assim, leve e pequena
Soprou-te uma alma cálida e divina.

Tão formosa te fez, tão soberana
Que dar-te aos anjos por irmã queria
Mas ao plasmar-te a carne predileta

Deus, comovido, te criara humana
E para tua justa moradia
Atirou-te nos braços do poeta.

Soneto do amigo - Vinícius de Moraes

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contem o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Soneto do amor demais - Vinícius de Moraes

Não, já não amo mais os passarinhos
A quem, triste, contei tanto segredo
Nem amo as flores despertadas cedo
Pelo vento orvalhado dos caminhos.

Não amo mais as sombras do arvoredo
Em seu suave entardecer de ninhos
Nem amo receber outros carinhos
E até de amar a vida tenho medo.

Tenho medo de amar o que de cada
Coisa que der resulte empobrecida
A paixão do que se der à coisa amada

E que não sofra por desmerecida
Aquela que me deu tudo na vida
E que de mim só quer amor - mais nada.

Soneto sentimental à cidade de São Paulo - Vinícius de Moraes

Ó cidade tão lírica e tão fria!
Mercenária, que importa - basta! - importa
Que à noite, quando te repousas morta
Lenta e cruel te envolve uma agonia

Não te amo à luz plácida do dia
Amo-te quando a neblina te transporta
Nesse momento, amante, abres-me a porta
E eu te possuo nua e fugidia.

Sinto como a íris fosforeja
Entre um poema, um riso e uma cerveja
E que mal há se o lar onde se espera

Traz saudade de alguma Baviera
Se a poesia é tua, e em cada mesa
Há um pecador morrendo de beleza?

Meus caros, volta-se porque se tem saudade - Vinícius de Moraes

Meus caros, volta-se porque se tem saudade
Porque se foi feliz intimamente
Volta-se porque se tocou num inocente
E porque se encontrou tranquilidade

A despeito da vida que acorrente
Volta-se, volta-se para a sinceridade
Volta-se sempre, tarde ou de repente
Na alegria ou na infelicidade.

E nada como esse apelo da lembrança
Para se transfigurar numa esperança
Essa desolação que uma alma leve

Assim é que, partindo, eu vou levando
Toda a desolação de um até-quando
Num ardente desejo de até-breve.

Natureza humana - Vinícius de Moraes

Cheguei. Sinto de novo a natureza
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singeleza

Vagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesa

Ante a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensar

Que a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar.

O maestro Villa-Lobos fixa-se na eternidade

Na verdade, Mestre, não morreste.
A morte apenas abriu para o teu vulto
O seu nicho de treva, de modo a que melhor pudesses
Brilhar em tua glória. Não precisavas
Da morte para nada.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Tudo se faz de forma assim tão vária - Marcelo Diniz

Tudo se faz de forma assim tão vária
a nunca ser o mesmo que se escreve;
escreve-se porque falar é breve
e, eterna, a lavra quer-se abecedária;

tudo se faz, portanto, involuntária
e cautelosamente, como deve
quem deseja dotar o que é mais leve
de concisão sutil tão necessária;

porque se passe a limpo o repetido
para gravar o travo do que é dito
fixo na cifra e nítido no lido;

faz-se todo, finito após finito
a fim de, a cada surto do sortido,
somar-se ao infinito um outro escrito.

sábado, 2 de outubro de 2010

Todas as namoradas que eu já tive - Vinicius de Moraes

Todas as namoradas que eu já tive
Estão noivas
Uma só dentre todas não está noiva
Casou-se.
Nenhuma se lembra mais de mim
As que tiveram meus beijos evitam meus olhos
As que tiveram minha afeição riem mal de mim
E beijam furtivamente os noivos nos cinemas e nas praias
Todas têm meus sonetos de amor
Com promessas ardentes de constância e fidelidade
Todas têm meu retrato
O retrato do menino risonho que eu já fui
Com todas eu gastei algumas horas do dia
E algumas horas da noite
Todas estão noivíssimas
E são apenas meninas sem juízo fazendo o que querem
Dando aos namorados anteriores a satisfação social do
noivado
E exibindo o noivo aos olhos das moças sem
namorado.

Algumas eu estimei sinceramente
Sem grandes palavras mas com olhares francos
Olhares que eu estudava nos bondes com outras
Para fazê-los ainda mais verdadeiros
Com outras me diverti
Passeando horas e horas braço com braço
Com palavras grandes e pequenos olhares
A todas eu feri inconscientemente
As que eu beijei e as que eu não beijei
As que eu beijei porque um dia não quis beijar
As que eu não beijei porque um dia quis beijar.

Vi-as fugirem todas de mim
E me vi fugindo de todas elas
Vejo-as agora aqui e ali ontem e hoje
A casada, com um filho
As noivas, com brilhos maternais nos olhos
Futuros infelizes para o mundo
Vejo-me por momentos pai de família comprando
brinquedos
E a satisfação de estar só é tão grande
Que no fundo eu estimo sinceramente todas essas meninas
Que estão noivas e serão muito felizes
E a que está casada e não é feliz mas faz que é

E me estimo mais, ainda, a mim próprio

Que estou só, feliz e só, com os meus amigos e com a minha
boemia discreta.