domingo, 30 de outubro de 2011

Alma - Fernando Pessoa (por Ricardo Reis)

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.



Literatura portuguesa. Citações e pensamentos. Pessoa, Fernando, 1888-1935. Paulo Neves da Silva (org.).-São Paulo: Leya, 2011.

Fronteiras - Mauro Luis Iasi

Os corações
(assim como as pátrias)
não deviam te fronteiras.

Queria explodi-los
em suspiros, gozo e anátemas
para que de tantos pedaços
brotassem outras centenas.

Os corações
(assim como as pátrias)
não deviam ter fronteiras...

mas têm.



Iasi, Mauro Luis
Meta amor fases: coletânea de poemas/Mauro Luis Iasi. 2ª.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

A medida do verso - Mauro Luis Iasi

Quem quiser medir meu verso
não pense em sílabas:
pense em lágrimas.


Quem quiser sentir meu verso
não pense em rimas:
pense em sinas... pense em sagas.



Iasi, Mauro Luis
Meta amor fases: coletânea de poemas/ Mauro Luis Iasi.-2ªed..- São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

domingo, 16 de outubro de 2011

Basta de ser o outro - Paulo Bonfim

Basta de ser o outro...
O herdeiro da terra,
O neto de seus avós!
Basta de ser
O que leu
E o que ouviu...
À terra devolvo
O cálcio, o ferro, o fósforo;
À nuvem devolvo a água rubra,
Aos mortos,
As angústias herdadas,
Aos vivos
Os gestos e as palavras recebidas...
Basta de ser o outro,
Colcha de retalhos alheios,
Cobrindo um frio verdadeiro.



Bonfim, Paulo. Poemas escolhidos. Círculo do livro.

Soneto XXIV - Paulo Bonfim

Agora, peço muito que me ajudes
A retornar ao ponto de partida,
Novos olhos revejam minha vida
Antes que ela transborde dos açudes.

Despirei nesse instante as atitudes,
Minha roupa de estrelas já cerzida,
O chapéu de alvoradas e a esquecida
Capa de chuvas e de ventos rudes.

Comigo ficarão unicamente
Os versos que escrevi e as derradeiras
Flores que desfolhaste em minha mente.

Depois, no grande espelho, a tarde é calma:
- Saber que passo além destas fronteiras,
Com meus disfarces já cobertos de alma!



Bonfim, Paulo. Poemas escolhidos. Círculo do Livro

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O pão - Paulo Bonfim

O pão que mastigas
Com lascas de lua,
Penetra tua noite
E leva pelos caminhos da fome
Trigais ao vento.
Em tua memória
Marcaste com grãos
O atalho dos dias na floresta.
Retorna sobre ti mesmo
E terás descoberto o poema,
Colhe as espigas floridas de teu passo,
E terás descoberto a vida.



Bonfim, Paulo. Poemas escolhidos. São Paulo. Circulo do livro.

Amor foi embora - Macedonio Fernández

Amor foi embora; enquanto durou
de tudo fez prazer;
Quando foi embora
Nada deixou que não doesse.



Fernández, Macedonio. Poemas. Buenos Aires:
Corregidor, 2010

Por ACONTECIMENTOS

Um novo organismo novo - Jorge Salomão

um novo organismo novo
pássaros despertam manhã
caboclo triste
ar de sertão
vida e homens áridos
com o pé na água do rio corrente
correr trechos
estradas
tampas
boca aberta cariada a sorrir por
montanhas de desconexas palavras
soltas ao vento no balanço da suave
palmeira que brilha nos últimos
raios de sol da tarde de hoje.


Salomão , Jorge. Conversa de mosquitos.
Rio de Janeiro: Jacaré Produções, 2011.

Por ACONTECIMENTOS

A mulher e a casa - João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.



Melo Neto, João Cabral de, 1920-
Antologia Poética. 4ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978.

A educação pela pedra - João Cabral de Meo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
( de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.



Melo Neto, João Cabral de, 1920-
Antologia Poética. 4ªedição. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Troca - Mario Benedetti

É importante fazê-lo

quero que me contes
teu último otimismo
eu te ofereço minha última
confidência

mesmo que seja um truque
mínimo

fiquemos cara a cara
estás só
estou só
por algo somos próximos

a solidão também
pode ser
uma chama.



Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen.- Campinas, SP: Venus, 2010

Façamos um trato - Mario Benedetti

Companheira
você sabe
que pode contar
comigo
não até dois
ou até dez
mas contar
comigo

se alguma vez
você repara
quando a olho nos olhos
e uma faísca de amor
reconhece nos meus
não alerte seus fuzis
nem pense quanto delírio
apesar da faísca
ou talvez porque existe
você pode contar
comigo

se outras vezes
me encontra
arredio sem motivo
não pense quanta fraqueza
assim mesmo pode contar
comigo

porém façamos um trato
eu gostaria de contar
contigo
é tão lindo
saber que você existe
a gente se sente vivo
e quando digo isto
quero dizer contar
mesmo que seja até dois
mesmo que seja até cinco
não para que corra
atenciosa em meu auxilio
mas para saber
com toda a certeza
que você sabe que pode
contar comigo.



Benedetti, Mario, 1920-2009
O amor, as mulheres e a vida/Mario Benedetti;
tradução Julio Luis Gehlen. - Campinas, SP: Venus, 2010.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A criança que fui chora na estrada - Fernando Pessoa

I

A criança que fui chora na estrada (1933)

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.



Pessoa, Fernando. Novas Poesias Inéditas. Seleção, organização e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno. Lisboa: Ática, 1973.

Silêncio e Palavra - Thiago Mello

A couraça de palavras
protege nosso silêncio
e esconde aquilo que somos.

Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.

Ademais, nem são palavras.
Sons vazios de mensagem,
são como fria mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros cansados,
que não encontram pouso,
certamente tombarão.



Mello, Thiago. Poemas Preferidos PeloAutor e seus Leitores. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2006.