segunda-feira, 23 de abril de 2012

Leilão de jardim - Cecília Meireles

Quem me compra um jardim com flores? borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?

(Este é o meu leilão!)


Meireles, Cecília, 1901-1964.
Ou isto ou aquilo; ilustrações de Eleonora Affonso. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira; 4ª ed.; 1980.

Aurora - Adolfo Casais Monteiro

A poesia não é voz- é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa.  No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não  há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.


Monteiro, Adolfo Casais. "Voo sem pássaro dentro". In.- Poesias completas.
Lisboa: Casa da moeda, 1993.

Não se mate - Carlos Drummond de Andrade

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.


Andrade, Carlos Drummond de. "Brejo das almas." In:--. Poesia Completa. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 2002.

domingo, 15 de abril de 2012

Meu epitáfio - Cora Coralina

Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu braço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.


Coralina, Cora, 1889-1985.
Melhores poemas/ Cora Coralina;seleção e apresentação Darcy França Denófrio. 2ª ed. rev. e ampliada - São Paulo: Global, 2004.

Ofertas de Aninha (aos moços) - Cora Coralina

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.


Coralina, Cora, 1889-1985.
Melhores poemas/ Cora Coralina; seleção e apresentação Darcy França Denófrio. 2ª ed. rev. e ampliada.- São Paulo: Global, 2004.- (coleção melhores poemas/direção Edla van Steen).

terça-feira, 10 de abril de 2012

Que a arte não se torne para ti - Sophia de Mello Breyner

Que a arte não se torne para ti compensação daquilo que
Não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre
Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre a montanha e o mar
Construirás - como se diz - a casa térrea -
Construirás a partir do fundamento."


Sophia de Mello Breyner, "A casa térrea".
in: "O nome das coisas." Lisboa, 1977.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

quando eu tiver setenta anos - Paulo Leminski

quando eu tiver  setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar o meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.


Leminski, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985

Fábula - Paulo Henriques Britto

Um pensamento pensado
até a total exaustão
termina por germinar
no mesmo exato lugar
sua exata negação.

enquanto isso, uma ideia
trauteada numa flauta
faz uma cidade erguer-se-
é claro, sem alicerces,
mas ninguém dá pela falta.


Britto, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

acaba que cada um - Antoine Emaz

acaba que cada um
ao menor problema
se muda de si mesmo
para um pouco mais longe
todos os dias
para um pouco mais longe

no máximo a gente se acompanha
forçando o sorriso


Emaz, Antoine. "Boue/Lama"XI. In: Lama, pele. Tradução e posfácio de Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

Marianna e Chamilly - Adília Lopes

Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades

Terei
sempre saudades
e gosto assim


Lopes, Adília. Caderno. Lisboa: Et etc.,2007.

domingo, 8 de abril de 2012

As formigas - Eduardo Galeano

Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade,
como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta. 
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que a deixou paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.


Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM, 2011.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Janela sobre a palavra/2 - Eduardo Galeano

A letra A tem as pernas abertas.
A M é um sobe desce que vai e vem entre o céu e o inferno.
A O , círculo fechado, asfixia.
A R está evidentemente grávida.
- Todas as letras da palavra AMOR são perigosas - comprova Romy Díaz-Perera.
Quando as palavras saem da boca, ela as vê desenhadas no ar.


Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/ Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM,2011.

A pequena morte - Eduardo Galeano

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos,e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.



Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres/ Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.- Porto Alegre: L&PM,2011.