sábado, 15 de maio de 2010

Apontamentos - Manoel de Barros

Deixei uma ave me amanhecer.


Toda vez que a manhã está sendo começada nos
meus olhos, é assim...

Essa luz empoçada em avencas.

As avencas são cegas.
Nenhuma flor protege o silêncio quanto elas.

Ó a luz da manhã empoçada em avencas!


Sabiá de setembro tem orvalho na voz.
De manhã ele recita o sol.


Quando eu nasci
   o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que não me achei  -  e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo.


Agora estou sonhado de glicínias.


Não sei bem de que cor é a cor do amaranto.
Mas pelo amar e pelo canto fica bem esse
amaranto aí (melhor do que se eu usasse
perpétua, que é o outro nome que se põe a essa
flor).
Amaranto murmura melhor.


Achei entre os pertences de Bernardo um vaso
de colher chuvas, um cachimbo
e um rosto de inseto dependurado na calça.
Bernardo tem fé quase assim de molusco.
Para saber dos passarinhos só precisa de suas
ignorâncias.


A voz de um passarinho me recita.


Os morros se andorinham longemente...
Eu me horizonto.
Eu sou o horizonte dessas garças.


Depois que atravessarem o muro e a tarde
os caracóis cessarão.
Às vezes cessam ao meio.
Cessam de repente, porque lhes acaba por
dentro a gosma com que sagram os seus
caminhos.
Vêm os meninos e os arrancam da parede
ocos
E com formigas por dentro passeando em seus
restos de carne.
Essas formigas são indóceis de ocos.
Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos
de voar!

P.S.: Caracol é uma solidão que anda na parede.

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