sábado, 30 de abril de 2011

Pensamento - Arnaldo Antunes

Pensamento que vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.


Antunes, Arnaldo. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 2001.

Imitação das coisas - Duda Machado

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos e concentrados
- como no amor-, embora adivinhando,
e já pouco importa, que ainda
não estamos preparados.


Machado, Duda. Margem de uma onda. São Paulo: Edditora 34, 1977.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Sentir tudo de todas as maneiras - Fernando Pessoa ( Álvaro de Campos) - trecho

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.

Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ Álvaro de Campos: eição Teresa Rita Lopes.-São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Uns, com os olhos postos no passado - Fernando Pessoa (Ricardo Reis)

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto -
O dia real que vemos? No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia / [poesias de] Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Não torna ao ramo a folha que o deixou - Fernando Pessoa (Ricardo reis)

Não torna ao ramo a folha que o deixou,
Nem com seu mesmo pé se uma outra forma.
O momento, que acaba ao começar
Este, morreu p'ra sempre.
Não me promete o incerto e vão futuro
Mais do que esta repetida experiência
Da mortal sorte e a condição perdida
Das coisas e de mim.
Por isso, neste rio universal
De que sou, não uma onda, senão ondas,
Decorro inerte, sem pedido, nem
Deuses a quem o faça.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ [poesias de ] Ricardo Reis. - São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Não quero recordar nem conhecer-me - Fernando Pessoa ( Ricardo Reis)

Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos de mais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.

Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.

Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.


Pessoa, Fernando, 1888-1935.
Poesia/ [poesias de] Ricardo Reis - São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

domingo, 24 de abril de 2011

Errando no museu Picasso - Affonso Romano de Sant'Anna

Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.

Mas quando erra,
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com bandeirilhas na carne.

Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.

Ele erra, mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.


Poesia reunida: 1965-1999/ Affonso Romano de Sant'Anna.-Porto Alegre: L&pm,2004.

Estás partindo de mim - Affonso Romano de Sant'Anna

Estás partindo de mim
e eu pressinto que me partes,
e partindo, em ti me vais levando,
como eu que fico
e em mim vou te criando.

Tanto mais tu me despedes
e te alongas,
tanto mais em mim vou te buscando
e me alongando,
tanto mais em mim vou te compondo
e com a lembrança do teu ser
me conformando.

Estás partindo de mim
e eu pressinto:
na verdade, há muito que partias,
há muito que eu consinto
que tu partas como um mito.

Mas não és a única que partes
nem eu o único que fico:
sei que juntos e contrários
nos partimos:
- pois tanto mais nos desencontros nos revemos,
tanto mais nas despedidas consentimos.



Poesia reunida: 1965-1999/Affonso Romano de Sant'Anna.-Porto Alegre:L&PM, 2004.

Tanto mais eu te contemplo - Affonso Romano de San'tanna

Tanto mais eu te contemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio.

Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
nos meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?

Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?
Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.

E à força, de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,

pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.



Poesia reunida: 1965-1999/ Affonso Romano de Sant'Anna. Porto Alegre: L&PM,2004.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Green god - Eugénio de Andrade

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



Eugénio de Andrade/ Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudos, notas de Arnaldo Saraiva, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O sol na ilha de Poros - Jean-Pierre Lemaire

O quarto do sol
o quarto dos enamorados azuis
o quarto da noite dos tempos
Todos se comunicam
na memória da felicidade
que conserva suas cores puras
sem paredes entre as horas


Jean-Pierre Lemaire/Poemas: trad. de Júlio Castanõn Guimarães