sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Aparência - Álvaro Alves de Faria

Não é um dia
este dia
mas um instante.
Nada além
nem aquém disso:
um momento.

Não é uma noite
esta noite
mas um apelo.
Nada mais
nem menos que isso:
um pedido.

Não é o mundo
este mundo
mas sim ausência.

Nem isso nem aquilo:
só aparência.




Roteiro da poesia brasileira: anos 60/ seleção e prefácio Pedro Lyra;
São Paulo: Global, 2011.

Introdução à arte das montanhas - Leonardo Fróes

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.



Roteiro da poesia brasileira; anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; São Paulo: Global, 2011.

Escrever / Não escrever - Sérgio de Castro Pinto

escrever é um suicídio branco.
um consumir-se
no fogo brando das palavras.

não escrever, um suicídio em branco.
um consumar-se sem metáforas.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60 / seleção e prefácio Pedro Lyra; São Paulo: Global, 2011.

Sugestões - Roberto Pontes

Se me dizem a palavra trigo
quero possuir a lírica semente.
Se me falam a palavra pedra
Logo imagino o leito de uma estrada.
Se a palavra polícia é-me dita
Sonho com a segurança da cidade.
Porém, se os valores vão ficando invertidos,
Se me dizem a palavra trigo
Penso então nas mãos mais calejadas;
Se me falam a palavra pedra
Logo explode a ideia de confronto;
E se a palavra polícia é ouvida
Vem com berros e o gemer dos torturados.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra;
São Paulo: Global, 2011.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Assovio - Cecília Meireles

Ninguém abra a sua porta
para ver o que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
- Porto Alegre,RS: L&PM,2010.

Os remos batem nas águas - Cecília Meireles

Os remos batem nas águas:
tem de ferir, para andar.
As águas vão consentindo-
esse é o destino do mar.


Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/ Cecília Meireles;[organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada l - Manoel de Barros

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
-Imagens são palavras que nos faltaram.
-Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
-Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

Que a palavra parede não seja símbolo de obstáculos à liberdade - Manoel de Barros

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo:Leya,2010.

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia - Manoel de Barros

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:

a-Esfregar pedras na paisagem.
b-Perder a inteligência das coisas para vê-las.(Colhida em Rimbaud).
c-Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d-Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos.
e-Perguntar distraído: - O que há de você na água?
f-Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.
g-Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas de pensão...
h-Aprender a capinar com enxada cega.
i-Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos.
j-Deixar os substantivos passarem anos no esterco,
deitados de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto de chão - como cabelos desfeitos no chão - ou como o bule de Braque - áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro - um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.
l-Jogar pedrinhas nim moscas...



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010.

A palavra - Carlos Drummond de Andrade

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
A paixão medida/Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Miguel Sanches neto.- Rio de Janeiro: Record, 2002.

Não sei distinguir no céu as várias constelações - Cecília Meireles

Não sei distinguir no céu as várias constelações:
não sei os nomes de todos os peixes e flores,
nem dos rios nem das montanhas:
caminho por entre secretas coisas,
a cada lugar em que meus olhos pousam,
minha boca dirige uma pergunta.

Não sei o nome de todos os habitantes do mundo,
nem verei jamais todos os seus rostos,
embora sejam meus contemporâneos.

Não, não sei, na verdade, como são em corpo e alma
todos os meus amigos e parentes.
Não entendo todas as coisas que dizem,
não compreendo bem do que vivem, como vivem,
como pensam que estão vivendo.

Não me conheço completamente,
só nos espelhos me encontro,
tenho muita pena de mim.

Não penso todos os dias exatamente
do mesmo modo.
As mesmas coisas me parecem a cada instante diversas.
Amo e desamo, sofro e deixo de sofrer,
ao mesmo tempo, nas mesmas circunstâncias.

Aprendo e desaprendo,
esqueço e lembro,
meu Deus, que águas são estas onde vivo,
que ondulam em mim, dentro e fora de mim?

Se dizem meu nome, atendo por hábito.
Que nome é o meu?
Ignoro tudo.

Quando alguém diz que sabe alguma coisa,
fico perplexa:
ou estará enganado, ou é um farsante
- ou somente eu ignoro e me ignoro desta maneira?

E os homens combatem pelo que julgam saber.
E eu, que estudo tanto,
inclino a cabeça sem ilusões,
e a minha ignorância enche-me de lágrimas as mãos.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM,2010.

Todas as coisas tem nome - Cecília Meireles

Todas as coisas têm nome.
(Tem nome todas as coisas?)

Todos os verbos são atos.
(São atos todos os verbos?)

Com a gramática e o dicionário
faremos nossos pequenos exercícios.

Mas quando lermos em voz alta o que escrevemos,
não saberão se era prosa ou verso,
e perguntarão o que se há de fazer com esses escritos:

porque existe um som de voz,
e um eco - e um horizonte de pedra
e uma floresta de rumores e água

que modificam os nomes e os verbos
e tudo não é somente léxico e sintaxe.

Assim tenho visto.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organização Fabricio Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Não sei o que desgosta a minha alma doente - Fernando Pessoa

Não sei o que desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Dói-me realmente.

Como um barco absorto
Em se naufragar
À vista do porto
E num calmo mar.

Por meu ser me afundo,
P'ra longe da vista.
Durmo o incerto mundo.



Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia, 1902-1917 / Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das letras, 2006.

Poente - Fernando Pessoa

A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.

Não me toques, fales, olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...

Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.

Quero estar só nesta hora...
Sem tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,

Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, iriado
De ti, mancha nesta calma

Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.



Pessoa, Fernando, 1888-1935
Poesia, 1902-1917 / Fernando Pessoa; edição Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. - São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Ao sentir nos pássaros - Carlos Drummond de Andrade

Ao sentir nos pássaros
tanta liberdade
e aéreo poder,
imagina um pássaro
superior a todos
e tão invisível
que seu vôo deixe
sensação de sonho.
Com leveza e graça
o homem pensa Deus.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
A paixão medida / Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Miguel Sanches Neto.- Rio de Janeiro: Record, 2002.

A folha - Carlos Drummond de Andrade

A natureza são duas.
Uma,
tal qual se sabe a si mesma.
Outra, a que vemos. Mas vemos?
Ou é a ilusão das coisas?

Quem sou eu para sentir
o leque de uma palmeira?
Quem sou, para ser senhor
de uma fechada, sagrada
arca de vidas autônomas?

A pretensão de ser homem
e não-coisa ou caracol
esfacela-me em frente à folha
que cai, depois de viver
intensa, caladamente,
e por ordem do Prefeito
vai sumir na varredura
mas continua em outra folha
alheia a meu privilégio
de ser mais forte que as folhas.



Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
A paixão medida / Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Miguel Sanches Neto. - Rio de Janeiro: Record, 2002.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Receita contra dor de amor - Roseana Murray

chore um mar inteiro
com todos os seus barcos a vela
chore o céu e suas estrelas
os seus mistérios o seu silêncio
chore o equilibrista caminhando
sobre a face de um poema
chore o sol e a lua
a chuva e o vento

para que uma nova semente
entre pela janela adentro



Murray, Roseana
Receitas de olhar/Roseana Murray; ilustrações Elvira Vigna. - São Paulo: FTD, 1997.- (Coleção falas poéticas)

Receita de se olhar no espelho - Roseana Murray

se olhe de frente
de lado
de costas
de cabeça para baixo
pinte o espelho
de azul dourado vermelho
faça caretas ria sorria
feche os olhos abra os olhos
e se veja sempre surpresa

quem é você?



Murray, Roseana
Receitas de olhar/Roseana Murray; ilustrações Elvira Vigna. - São Paulo: FTD,1997. - (Coleção falas poéticas)

Receita de olhar - Roseana Murray

nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas
o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol

faça do seu olhar imensa caravela



Murray, Roseana
Receitas de olhar/ Roseana Murray; Ilustrações Elvira Vigna. - São Paulo:
FTD, 1997. - (Coleção falas poéticas)