domingo, 25 de novembro de 2012

Cantiga - Cecília Meireles

Nós somos como perfume
da flor que não tinha vindo:
esperança do silêncio,
quando o mundo está dormindo.

Pareceu que ouve o perfume...
E a flor sem vir , se acabou.
Oh! abelha imaginativa!
o que o desejo inventou...



Meireles, Cecília , 1901-1964
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queirós. - 1ª ed.- São Paulo: Moderna, 2005.-

Canção - Cecília Meireles

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol foram limpos
e houver festa pelo mar
- ir-te-ei visitar.

Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor
- ir-te ei ver, amor.

Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.

Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.


Meireles, Cecília,1901-1964.
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queirós- 1ª ed.- São Paulo: Moderna, 2005.-

Voo - Cecília Meireles

 Alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras
como águias imensas.
Como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.

Oh! alto e baixo
em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós
as palavras voam.

E às vezes pousam.


Meireles, Cecília, 1901-1964.
As palavras voam/antologia poética de Cecília Meireles;organizador Bartolomeu Campos de Queirós.- 1ª.ed. - São Paulo: Moderna, 2005.-

Segunda canção do beco - Manuel Bandeira

Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o cheiro
Da areia da praia.
Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia.

Teu corpo moreno
Deve ter o gosto
De fruta de praia
Deve ter o travo
Deve ter a cica
Dos cajus da praia.

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
Nunca foi feliz.


Traço de poeta.-1ª ed. - São Paulo: Global, 2006.- (Antologia de poesias para jovens)

Eu queria fazer parte das árvores - Manoel de Barros

Eu queria fazer parte das árvores como os
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu naõ poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E isso era mesmo.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato/Manoel de Barros.- São Paulo: Leya, 2010

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ai daqueles... - Paulo Leminski

ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.



Traço de poeta. - 1ª ed. - São Paulo: Global, 2006.- (Antologia de poesias para jovens)

Eu bem sabia - Manoel de Barros

Eu bem sabia que a nossa visão é um ato
poético do olhar.
Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta
nas margens do rio.
Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra
na beira do rio.
Depois eu quisera também que a minha palavra
fosse desaberta na margem do rio
Eu queria mesmo que as minhas palavras
fizessem parte do chão como os lagartos
fazem.
Eu queria que minhas palavras de joelhos
no chão pudessem ouvir as origens da terra.


Barros, Manoel de, 1916-
Menino do mato / Manoel de Barros. - São Paulo:
Leya, 2010.

Naquele dia - Manoel de Barros

Naquele dia eu estava um rio.
O próprio.
Achei em minhas areias uma concha.
A concha trazia clamores do rio.
Mas o que eu queria mesmo era de me
aperfeiçoar quanto um rio.
Queria que os passarinhos do lugar
escolhessem minhas margens para pousar.
e escolhessem minhas árvores para
cantar.
Eu queria aprender a harmonia dos gorjeios.


Barros, Manoel de, 1916.
Menino do mato / Manoel de Barros. - São Paulo; Leya, 2010.

Criança - Cecília Meireles

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Meireles, Cecília, 1901-1964
As palavras voam/ antologia poética de Cecília Meireles; organizador Bartolomeu Campos de Queiros-1ªed. - São Paulo: Moderna,2005. -  

domingo, 11 de novembro de 2012

Parte de entrevista de Ferreira Gullar a Revista Veja


     Já fiquei onze anos sem publicar um livro. Meu último saiu há há onze anos. Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho que morreu. Ele via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí começo um poema... Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos.
Não dá para escrever um poema sobre qualquer coisa.
     O mundo aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela e é isso que faz nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.


                                                               Ferreira Gullar