quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Narciso e Narciso - Ferreira Gullar

Se Narciso se encontra com Narciso

e um deles finge

que ao outro admira

(para sentir-se admirado),

o outro

pela mesma razão finge também

e ambos acreditam na mentira.



Para Narciso

o olhar do outro, a voz

do outro, o corpo

é sempre o espelho

em que ele a própria imagem mira.

E se o outro é

como ele

outro Narciso,

é espelho contra espelho:

o olhar que mira

reflete o que o admira

num jogo multiplicado em que a mentira

de Narciso a Narciso

inventa o paraíso

E se amam mentindo

no fingimento que é necessidade

e assim

mais verdadeiro que a verdade.



Mas exige, o amor fingido,

ser sincero

o amor que como ele

é fingimento.

e fingem mais

os dois

com o mesmo esmero

com mais e mais cuidado

- e a mentira se torna desespero.

Assim amam-se agora

se odiando.



O espelho

embaciado,

já Narciso em Narciso não se mira:

se torturam

se ferem

não se largam

que o inferno de Narciso

é ver que o admiravam de mentira.

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