quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Guardar - Antonio Cícero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá~la, isto é iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é,  estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que  se quer guardar.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Os ouvidos produzem - Gastão Cruz

Os ouvidos produzem
o som há muito decomposto entre
as folhas dos dentes.

E pode um filho ouvir o mesmo mar
que nada mais será o
caos das folhas.

Tens em torno de ti o mar descrito
és o filho
que escuta os meus ouvidos.

O olhar - Manoel de Barros

Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida.

O casaco - Manoel de Barros

Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado
e sujo.
Tentou sair da angústia
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no
lixo.
Ele queria amanhecer.

Enunciado - Manoel de Barros

Agora não posso priscar na areia quente
que nem os lambaris que escaparam do anzol.
Não posso mais correr nas chuvas na moda que
os bezerros correm.
Nem posso mais dar saltos-mortais nos ventos.
Agora
Eu passo as minhas horas a brincar com palavras.
Brinco de carnaval.
Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara.
Faço o que posso.

O lápis - Manoel de Barros

É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha
particular.
Tâo pequena que coubesse na ponta do meu
lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas
para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para
compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no
fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante
que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

O bailarino - Mario Quintana

Não sei dançar.
Minha maneira de dançar é o poema.

Às vezes tudo se ilumina - Mario Quintana

Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade
E é como se agora este pobre, este único, este
efêmero instante do mundo
Estivesse pintado numa tela, sempre...

Ela e eu - Mario Quintana

A minha loucura está escondida de medo embaixo
da minha cama
Ou dançando em cima do meu telhado
E eu estou sentado serenamente na minha poltrona
Escrevendo este poema sobre ela.

O poeta - Mario Quintana

Venho do fundo das Eras,
Quando o mundo mal nascia...
Sou tão antigo e tão novo
Como a luz de cada dia!

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Quem ama inventa - Mario Quintana

Quem ama inventa as coisas a que ama... Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh!Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Oh! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

A verdadeira arte de viajar - Mario Quintana

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos  os
caminhos do mundo...
Não importa que os compromissos, as obrigações,
estejam logo ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o
coração cantando!

Garça - Manoel de Barros

A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.

Teologia do traste - Manoel de Barros

As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são a luz do espírito - a gente sabe.
Há idéias luminosas - a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm..................................
.......................................................Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.

Os dois

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valery.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro... - Manoel de Barros

Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro.
Mas não tinha preparatórios de uma árvore
Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios.
Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte.
Ninguém era início de nada.
A gente pintava nas pedras a voz.
E o que dava santidade às nossas palavras era
a canção do ver!
Trabalho nobre aliás mas sem explicação
Tal como costurar sem agulha e sem pano.
Na verdade na verdade
Os passarinhos que botavam primavera nas palavras.

Poema para uma exposição - Mario Quintana

O quadro na parede abre uma janela
que dá para o outro mundo
deste mundo...

Um mundo isento de rumores
e de mil flutuações atmosféricas
 - alheio a toda humana contingência...

Onde um momento é sempre
e o mal e o bem não tem nenhum sentido...

Mundo
em que a forma também é a própria essência.

Ó vida
Transfixada ao muro - e que palpita,
entanto,
num misterioso, eterno movimento!

Carta - Mario Quintana

Eu queria trazer-te uma imagem qualquer
para os teus anos...
Oh! mas apenas este vazio doloroso
de uma sala de espera onde não está ninguém...
E que,
longe de ti, de tuas mãos milagrosas
de onde os meus versos voavam - pássaros de luz
a que deste vida com o teu calor -
é que longe de ti eu me sinto perdido
 - sabes? -
desertamente perdido de mim!
Em vão procuro...
mas só vejo de bom, mas só vejo de puro
este céu que eu avisto da minha janela.
E assim, querida,
eu te mando este céu, todo este céu de Porto Alegre
e aquela
nuvenzinha
que está sonhando, agora, em pleno azul!

As estrelas - Mario Quintana

Foram-se abrindo aos poucos as estrelas...
De margaridas lindo campo em flor!
Tão alto o Céu!... Pudesse eu ir colhê-las...
Diria alguma se me tens amor.

Estrelas altas! Que se importam elas?
Tão longe estão... Tão longe deste mundo...
Trêmulo bando de distantes velas
Ancoradas no azul do céu profundo...

Porém meu coração quase parava,
Lá foram voando as esperanças minhas
Quando uma, dentre aquelas estrelinhas,

Deus a guie! do céu se despencou...
Com certeza era o amor que tu me tinhas
Que repentinamente se acabou!

A canção - Mario Quintana

Enquanto os teus olhos ainda estão cerrados sobre os
mistérios noturnos da alma
E o dia ainda não abriu as suas pálpebras,
Nasce a canção dentro de ti como um rumor de águas,
Nasce a canção como um vento despertando as folhagens...
Não vem de súbito, vem de longe e de muito tempo.
Mas - agora - estás desperto na cidade e não sabes,
Entre tantos rumores e motores,
Como é que tens de súbito esta serenidade
De quem recebesse uma hóstia em pleno inferno.
Deve ser de versos que leste e nem te lembras,
De telas, de estátuas que viste,
De um sorriso esquecido...
E destas sementes de beleza
E que
- às vezes -
No chão do rumoroso deserto em que pisas,
Brota o milagre da canção!

Jardim interior - Mario Quintana

Todos os jardins deviam ser fechados,
Com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

As coisas - Mario Quintana

O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas das natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
e, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- Essas coisas que parece
não terem beleza
nenhuma
- é simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Poética(II) - Vinícius de Moraes

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
-Entrai, irmãos meus!

O mais-que-perfeito - Vinícius de Moraes

Ah, quem me dera ir-me
Contigo agora
Para um horizonte firme
( Comum, embora...)
Ah, quem me dera ir-me!

Ah, quem me dera amar-te
Sem mais ciúmes
De alguém em algum lugar
Que não presumes...
Ah, quem me dera amar-te!
Ah, quem me dera ver-te
Sempre a meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais: cuidado...
Ah, quem me dera ver-te!

Ah, quem me dera ter-te
Como um lugar
Plantado num chão verde
Para eu morar-te
Morar-te até morrer-te...

Escrever nem uma coisa nem outra... - Manoel de Barros

Escrever nem uma coisa nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

Poema - Augusto Frederico Schmidt

Encontraremos o amor depois que um de nós abandonar os brinquedos.
Encontraremos o amor depois que nos tivermos despedido
E caminharmos separados pelos caminhos.

Então ele passará por nós,
E terá a figura de um velho trôpego,
Ou mesmo de um cão abandonado.

O amor é uma iluminação, e está em nós, contido em nós,
E são sinais indiferentes e próximos que os acordam
do seu sono subitamente.

Vazio - Augusto Frederico Schmidt

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo -
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo -
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Sonetos - V - Augusto Frederico Schmidt

Noites, estranhas noites, doces noites!
A grande rua, lampiões distantes,
Cães latindo bem longe, muito longe.
O andar de um vulto tardo,raramente.

Noites, estranhas noites, doces noites!
Vozes falando, velhas vozes conhecidas,
A grande casa; o tanque em que uma cobra
Enrolada na bica, um dia apareceu.

A jaqueira de doces frutos, moles, grandes.
As grades do jardim. Os canteiros, as flores.
A felicidade inconsciente, a inconsciência feliz.

Tudo passou.Estão mudas as vozes para sempre.
A casa é outra já, são outros os canteiros e as flores.
Só eu sou o mesmo, ainda: não mudei!

O impossível carinho - Manuel Bandeira

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Poema desentranhado de uma prosa de Augusto Frederico Schmidt _ Manuel Bandeira

A luz da tua poesia é triste mas pura.
A solidão é o grande sinal do teu destino.
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros
seres te interessam realmente
Mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia
dos teus desaparecidos,
Dos que brincaram e cantaram um dia à lua das fogueiras
de São João
E hoje estão para sempre dormindo profundamente.
Da poesia feita como quem ama e quem morre
Caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza
Naturalmente
- Como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas.

Desafio - Manuel Bandeira

Não sou barqueiro de vela,
Mas sou um bom remador:
No lago de São Lourenço
Dei prova do meu valor!
Remando contra a corrente,
Ligeiro como a favor,
Contra a neblina enganosa,
Contra o vento zumbidor!
Sou nortista destemido,
Não gaúcho roncador:
No lago de São Lourenço
Dei prova do meu valor!
Uma só coisa faltava
No meu barco remador:
Ver assentado na popa
O vulto do meu amor...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Demora o olhar, demora... - Fernando Pessoa

Demora o olhar, demora
Mais um momento em mim...
Minh'alma há muito chora
Porque um olhar assim
A fita sem ter fim

Demora o olhar, e esquece
Que demoras o olhar...
Que melhor vida ou prece
Que, mesmo sem constar
Às almas que há de amar,
E à que a vida arrefece
Fica, olhar no olhar...

Às vezes, em sonho triste... - Fernando Pessoa

 Às vezes, em sonho triste,
Aos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha  nem se vive`
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

Folha caída - Fernando Pessoa

Nasceu uma flor, amor,
No meu coração.
Murcha já de dor, amor,
Fria de ilusão.

Busquei inda assim, amor,
Pela vida real
Flor como a que em mim, amor,
Me era sem igual.

Não a pude achar, amor,
- Tanto a procurei! - ;
E não posso amar, amor,
Porque não a achei.

Falou Deus - Fernando Pessoa

Em que barca vou
Pra que rio tão rio?
Falou Deus, e ouvi-o...
Eu sou o que sou.

Em que barca vou
P'ra que mar tão mar?...
Ouço Deus falar...
Não sou o que sou.

Em que barca vou
P'ra além de que oceano
Deus falou ao humano...
Sou mesmo o que não sou.

Porque? Como?...E os céus
São todos dentros e alma.
A voz de Deus é calma...
Porque sou Deus, disse Deus.

Onde estão os momentos que vivi? - Fernando Pessoa

Onde estão os momentos que vivi?
Onde estão as ideias que esqueci?
Talvez existam nalgum paraíso
Delicioso de vago e de preciso,
E ali me esperem para me dizer
Que foi melhor que houvesse de as perder,
Porque assim à grandeza de chorá-las
Junto a beleza d'alma de encontrá-las
Já quando do dizê-las a ânsia fútil
As não tornara cada uma inútil...
E esta ideia me faz menos triste
Mas esse paraíso acaso existe?

Como a noite é longa! - Fernando Pessoa

Como a noite é longa!
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem pr'ao pé de mim...

Amei tanta cousa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou...Já não sei...
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me  dormir,
Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

Ameaçou chuva... - Fernando Pessoa

Ameaçou chuva. E a negra
Nuvem passou sem mais...
Todo o meu ser se alegra
Em alegrias iguais.

Nuvem que passa...Céu
Que fica e nada diz...
Vazio azul sem véu
Sobre a terra feliz.

E a terra é verde, verde...
Porque então minha vista
Por meus sonhos se perde?
De que é que a minha alma dista?

Deus sabe melhor do que eu... - Fernando Pessoa

Deus sabe melhor do que eu
Quem sou eu
Por isso a sorte que me deu
É aquela em que melhor estou.

Deus sabe quem eu sou e alinha
Minhas acções
Duma forma que não é minha
Mas que tem íntimas razões.

Eu só tenho o que não quero... - Fernando Pessoa

Eu só tenho o que não quero
E a vida é pouco p'ra mim...
Não sei por que coisa espero
Nem se a quererei enfim...

Conto as horas como moedas
Que nunca penso em gastar...
E como quem rasga sedas
Não uso o que quero usar.

Quem me dera poder ter
Alguma cousa na vida
Que chorar ou que querer...
Ó pobre à porta da ermida...

Fecho os olhos, medito... - Fernando Pessoa

Fecho os olhos, medito
E, se invoco, revivo
Um momento meu ser é infinito
No inteiro eu entre mim e o que fui
Depois estagno, e o meu ser morto e esquivo
Rio fundo por mim flui.

O mar, o céu... - Fernando Pessoa

O mar.
O céu.
Chorar
E eu.

O céu
O mar.
Quem me deu
Chorar?

Tudo passa.
Cansa.

Nada nos faça dor... - Fernando Pessoa

Nada nos faça dor,
Nada nos canse de olhar,
Vivemos no torpor
De observar e ignorar.

Com o vago pensamento
De ir indo na corrente
Vivemos o momento
Irresponsavelmente.

Minha mãe, dá-me outra vez... - Fernando Pessoa

Minha mãe, dá-me outra vez
O meu sonho.
Ele era tão belo, mãe,
Que choro porque o tive...

Não era de gente,
Não era de casa,
Não era de andar num lugar,
Não sei de que era ou como era
Mas era tão belo como se eu soubesse agora isso tudo.

Não está à tua direita,
Não está à tua esquerda
E não está no teu colo,
Mas

Era uma cousa brilhante
Mas não tinha brilho...
Era uma cousa para criança,
Mas era verdade,
Era um brinquedo
E não acabava,
Era um lugar para ir
Mas a gente não voltava à noite...
Dá-me o meu sonho, mãe,
Assim mesmo como eu não sei o que ele é.

Quero voltar para trás, mãe,
E ir buscá-lo ao meio do caminho.
Não sei onde ele está
Mas é alí que está
E brilha onde eu o não vejo...
O meu sonho, mãe,
É o meu irmão mais novo.

Eu ando triste, mãe...
Triste como uma ave na gaiola,
Na gaiola desde inocente...
Dá-me o meu sonho, mãe
E deixa-me só sonhar...

Não são todos os teus beijos,
Nem todos os teus brinquedos,
Nem o teu colo onde durmo,
Que se parecem com ele
Quando o tenho, tenho-te a ti,
Ainda que lá não estejas, não me faltas lá,
Quando o tenho. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Tão abstracta é a ideia do teu ser... - Fernando Pessoa

Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica ao meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te; e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me  a ver-te, minto
À ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que me sonho o que me sinto sendo.

Cinza - Fernando Pessoa

No silêncio das cousas tristes
Ó minha amada,
Só tu para mim existes
Abandonada
De tudo quanto é corpo e realidade
Em tua alma; enfim
Sob a forma sentida da verdade
Dentro em mim.

No sossego das horas mortas
Ó minha amante
Só tu me apareces e exortas
E o Instante
Vive do que em ti vale mais, querida,
Do que o teu ser
O que em ti, cousa íntima e indefinida,
Não saberá morrer.

Nada temas... - Fernando Pessoa

Nada temas! Teu dia és tu, não morre
E a noite p'ra onde vais está em ti...

A tua vida é uma idéia tua
Tua morte seu contorno de escultura.

Não sabes fora do círculo que és
Todo o Universo, Deus, Vida, Morte
Pertence-te...É teu, és tu...Tua sorte
É um sonho teu, sombra tua a teus pés.

Antologia - Carlos Drummond de Andrade

Felizmente existe o álcool na vida.
Uns tomam éter, outros, cocaína.
Eu tomo alegria!
Minha ternura dentuça é dissimulada.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Estou farto do lirismo comedido.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã.
...os corpos se entendem, mas as almas não.
 - Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Nascer - Carlos Drummond de Andrade

Nascer
outra e outra vez
indefinidamente
como a planta sempre nascendo
da primeira semente;
pensar o dia bom
até criar a claridade
e nela descobrir
a primeira sílaba
da primeira canção.

Receita para não engordar sem necessidade de ingerir arroz integral e chá de jasmim - Carlos Drummond de Andrade

Pratique o amor integral
uma vez por dia
desde a aurora matinal
até a hora em que o mocho espia.

Não perca um minuto só
neste regime sensacional.
Pois a vida é um sonho e, se tudo é pó,
que seja pó de amor integral.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Teresa - Manuel Bandeira

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna


Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Epílogo - Manuel Bandeira

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...

Quando o acabei  - a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
- O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...

O quarto secreto, teu quarto - Clarice Lispector

Flores envenenadas na jarra. Roxas, azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital.
Nunca vi mais belas. Este então é o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.

Avareza - Clarice Lispector

Ter nascido me estragou a saúde.

Não soltar os cavalos - Clarice Lispector

Como em tudo, no escrever também tenho uma espécie de receio de ir longe demais. Que será isso? Por quê? Retenho-me, como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe onde. Eu me guardo. Por que e para quê? para o que estou me poupando? Eu já tive clara consciência disso quando uma vez escrevi: "é preciso não ter medo de criar". Por que o medo? Medo de conhecer os limites de minha capacidade? ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar? Quem sabe, assim como uma mulher que se guarda intocada para dar-se um dia ao amor, talvez eu queira morrer toda inteira para que Deus me tenha toda.

Escrever, humildade, técnica - Clarice Lispector

 Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em "humildade", refiro-me à  humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo.

Lembrar-se - Clarice Lispector

Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de "memória" , como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Contigo, comigo - Manuel Bandeira

Como contigo
Eu chego a mim!

Como me trazes
A esfera imensa
Do mundo meu
E toda a encerras
Dentro de mim!

Como contigo
Eu chego a mim!

Ah como pões
Dentro de mim
A flor, a estrela,
O vento, o sol,
A água, o sonho!...

Como contigo
Eu chego a mim!

Belo Belo - Manuel Bandeira

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou! - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

O exemplo das rosas - Manuel Bandeira

Uma mulher queixava-se do silêncio do amante: - Já não gostas de mim, pois não encontras palavras para me louvar!
Então ele, apontando-lhe a rosa que lhe morria no seio:
- Não será insensato pedir a esta rosa que fale?
Não vês que ela se dá toda no seu perfume?

Aninha e suas pedras - Cora Coralina

 Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que tem sede.

Meu Epitáfio - Cora Coralina

Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

Anúncio classificado - Carlos Drummond de Andrade

Procura-se apartamento
pequeno, bem situado,
onde caibam dois amantes
de frente como de lado.

Quer-se bem perto do mar
e bem longe do barulho,
de modo que a única música
ouvida seja a de Bach,

de Corrette, de Bomporti,
com seus preciosos discos
arrumados de tal sorte
que inda caibam uns livros

de poesia, está claro,
e também( toda uma estante)
os tratados de Epicuro,
Descartes, Spinoza, Kant.

A mesa-de cabeceira
deve ficar a seu cômodo
para que nenhuma aresta
machuque o amor na testa.

E a cama, sem ser estreita,
nem larga como avenida,
tenha espaço suficiente
para as doçuras da vida.

Caibam na pequena copa
a bandeja, o biscoitinho,
hoje guardados no armário
dos alvos lençóis de linho,

bem como aquelas garrafas
do escocês nacional
que a gente, faute de mieux,
ingere e não nos faz mal.

Procura-se apartamento
de quarto-e-sala (tão pouco
e tão muito), sem barata,
sem mosquito rezinguento,

sem vizinhos enervantes
que gritem palavras sujas,
sem terríveis, sem constantes
cortes d'água quando as nuas

formas já ensaboadas
se restauravam, cuidando
de logo após se enroscarem
nas formas  do amor, amando.

Quem souber de tal imóvel
não fique imóvel: na asa
do vento me informe onde,
onde é que fica essa casa!

O dia dos namorados - Carlos Drummond de Andrade

O dia dos Namorados
para mim é todo dia.
Não tenho dias marcados
para te amar noite e dia.

O dia 12 de junho,
como qualquer outro, diz
(e disso dou testemunho)
que contigo sou feliz.

Nossa história de amor - Carlos Drummond de Andrade

Nossa história de amor, com algumas trovoadas
e muito espaço azul em vinte e sete anos,
pediria talvez rimances e baladas
ou suaves canções de timbres verlainianos.

Mas prefiro contá-la ao jeito meu, mineiro,
no silêncio da voz, no êxtase do olhar,
pois afinal o amor, quando bem verdadeiro,
é música em si mesmo, e poesia sem par.

A companheira - Carlos Drummond de Andrade

A companheira
da vida inteira,
que a meu lado
une o passado
ao novo dia
em harmonia,
a sempre forte
e meu suporte
quando vacilo,
porte tranquilo,
voz de carinho
no meu caminho,
leal, paciente
constantemente,
simples, discreta
força do poeta,
quero-a no instante
final - constante
com a sua mão
acarinhando
em gesto brando
meu coração.

Soneto em louvor de Augusto Frederico Schmidt - Manuel Bandeira

Nos teus poemas de cadências bíblicas
Recolheste os sons das coisas mais efêmeras:
O vento que enternece as praias desertas,
O desfolhar das rosas cansadas de viver,

As vozes mais longínquas da infância,
Os risos emudecidos das amadas mortas:
Matilde, Esmeralda, a misteriosa Luciana,
E Josefina, complicado ser que é mulher e é também o Brasil.

A tudo que é transitório soubeste
Dar, com a tua grave melancolia,
A densidade do eterno.

Mais de uma vez fizeste aos homens advertências terríveis.
Mas tua glória maior é ser aquele
Que soube falar a Deus nos ritmos de sua palavra.

O último poema - Manuel Bandeira

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais limpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.