sábado, 21 de janeiro de 2012

Pássaro - Cecília Meireles

Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.



Meireles, Cecília, 1901-1964
Palavras e pétalas/ Cecília Meireles; [organizador Antonio Carlos Secchin].
-Rio de Janeiro: Desiderata, 2008.

Canção dos dias grandes - Gastão Cruz

A tarde não termina
porque o dia se esquece
de correr a cortina
pra que ele próprio cesse

É dia é dia ainda
vamos brincar correr
depois será bem-vinda
a noite que vier

E um frio tão fino
tão pouco já, tão leve
joga com o menino
no crepúsculo breve



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

[ meus amigos] - Paulo Leminski

meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão a mão
deixam na minha
a sua mão



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

Amigo - Alexandre O'neill

Mal nos conhecemos
inauguramos a palavra "amigo"!

"Amigo" é um sorriso
de boca em boca,
um olhar bem limpo,
uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
um coração pronto a pulsar
na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
escrupulosos detritos?)
"amigo" é um erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!

"Amigo" é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil
"amigo" vai ser, é já uma grande festa!



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

A canção da primavera - Gastão Cruz

A primavera canta
ouvi a sua voz
o rouxinol espanta-se
de ouvi-la como nós

A primavera canta
vais ouvi-la também
quando um pássaro canta
não se ouve mais ninguém

a primavera é ave
é ela o rouxinol
há pássaro que lave
melhor a luz do sol?



A lua no cinema e outros poemas/ organizador Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

[ Na ribeira deste rio] - Fernando Pessoa

Na ribeira deste rio
ou na ribeira daquele
passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
me dá calor ou dá frio.

Vou vendo o que o rio faz
quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
numa sequência arrastada,
do que ficou para trás.

Vou vendo e vou meditando,
não bem no rio que passa
mas só no que estou pensando,
porque o bem dele é que faça
eu não ver que vai passando.

Vou na ribeira do rio
que está aqui ou ali,
e do seu curso me fio,
porque, se o vi ou não vi,
ele passa e eu confio.



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

[as coisas] - Arnaldo Antunes

As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor,
posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência,
profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço,
destino, idade, sentido. As coisas não têm paz.



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

O país das maravilhas - Antonio Cícero

Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.



A lua no cinema e outros poemas/ organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

Uma voz - Ferreira Gullar

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando



A lua no cinema e outros poemas/organização Eucanaã ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

O tempo que não se perdeu - Pablo Neruda

Não se contam as ilusões
nem as compreensões amargas,
não há medida para contar
o que não podia acontecer-nos,
o que nos rondou como besouro
sem que tivéssemos percebido
do que estávamos perdendo.

Perder até perder a vida
é viver a vida e a morte
não são coisas passageiras
mas sim constantes, evidentes,
a continuidade do vazio,
o silêncio em que cai tudo
e por fim nós mesmos caímos.

Ai! o que esteve tão cerca
sem que pudéssemos saber.
Ai! o que não podia ser
quando talvez podia ser.

Tantas asas circunvoaram
as montanhas da tristeza
e tantas rodas sacudiram
a estrada do destino
que já não há nada a perder.

Terminaram-se os lamentos.



Neruda, Pablo, 1904-1973
O coração amarelo/ Neftali Ricardo Reyes; tradução de Olga Savary -
Porto Alegre: L&PM,2010.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

"Olho muito tempo o corpo de um poema" - Ana Cristina Cesar

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).-
Rio de janeiro: objetiva, 2001.

Cogito - Torquato Neto

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas o fim.



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiro do século/Italo Moriconi(organizador).-
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.



Moriconi, Italo (organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Neologismo - Manuel Bandeira

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.



Bandeira, Manuel, 1886-1968
Antologia poética.-12.ed.-Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Andorinha - Manuel Bandeira

Andorinha lá fora dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...



Bandeira, Manuel, 1886-1968
Antologia poética. - 12.ed.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

O rio - Manuel Bandeira

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.



Bandeira, Manuel,1886-1968
Antologia poética.- 12.ed.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001.

No Pão de Açúcar - Oswald de Andrade

No Pão de Açúcar
de cada dia
dai-nos Senhor
a poesia
de cada dia



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/Italo Moriconi(organizador).- Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Soneto - Mário de Andrade

Aceitarás o amor como eu o encaro?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... A evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.



Moriconi, Italo(organizador)
Os cem melhores poemas brasileiros do século/ Italo Moriconi(organizador).-Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

De minha mão - Manoel de Barros

De minha mão dentro do quarto
meu lambarizinho
escapuliu - ele priscava
priscava
até cair naquele
corixo.
E se beijou todo de água!
Eu se chorei...
Vi um rio indo embora de andorinhas...



Barros, Manoel de, 1916-
Poesia completa/ Manoel de Barros.-São Paulo: Leya, 2010.

Tema e variações - Manuel Bandeira

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado

Em sonho lembrei-me
de um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.

Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.



Bandeira, Manuel, 1886-1968
Antologia poética. - 12.ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001

domingo, 8 de janeiro de 2012

Convite - Horácio Dídimo

Venham todos
conversemos numa comunhão vulgar
sobre as mulheres e o mundo
tiremos o paletó e os sapatos
leiamos os jornais em voz alta
brindemos aos fatos imprevistos
entoemos canções ao velho mar

e que a madrugada nos encontre assim
participando rumorosamente
de uma humanidade sem destino



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global, 2011. - (Coleção Roteiro da poesia brasileira).

As palavras e os nomes da infância - Ângelo Monteiro

As palavras da infância tinham mágicas
Que os mágicos somente saberão,
E um ardor que os pomadores e os jardins
Nunca imaginam para o seu verão.

Palavras que - provindas de bem longe-
Viram nascer na luz de infantes olhos
O tamanho das coisas e dos homens
Medido por sua vara de condão.

O viço das palavras encantadas
Que os meninos trocavam sobre o mundo
Entre luas perdidas nas calçadas
Emanavam de um tempo mais profundo.

De um tempo em que os meninos não procuram
Outros nomes além dos nomes seus.
E nas conversas - cheias de futuro-
Nenhum fim vislumbravam num adeus.

Como os nomes que dávamos às coisas
Da malícia eram livres do legado
Saí de uma cidade para outra
Quando menino procurando Arnaldo.

Arnaldo. Não um nome de família.
Arnaldo apenas. Nada mais que Arnaldo.
Na infância os nossos nomes são o altar
De todas as estrelas em vigília.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global, 2011. - (Coleção Roteiro da poesia brasileira).

Aparência - Álvaro Alves de Faria

Não é um dia
este dia
mas um instante.
Nada além
nem aquém disso:
um momento.

Não é uma noite
esta noite
mas um apelo.
Nada mais
nem menos que isso:
um pedido.

Não é o mundo
este mundo
mas sim ausência.

Nem isso nem aquilo:
só aparência.



Roteiro da poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global. 2011.- ( Coleção Roteiro da poesia brasileira).

Acalanto - João de Jesus Paes Loureiro

E noite é noite alta
e, no poema,
silabam-se saudades de quem amo.
O que faria agora,
nessa hora,
aquela que me ama
e a quem eu quero?
Por que não está
aqui comigo,
entre as estrelas,
que adornam o colo claro desta noite?
(A noite debruçando em seu silêncio
a flor da solidão, pálida lua...)

Oh! sonho traz-me em tua caravela
aquela que me ama
e a quem adoro...
Tão bela
em sua moldura de ternura,
de alma musical
e meigo canto.

Então, brisa da noite, oh! brisa leve
revoa sobre o sonho - essa lagoa -
e pousa na sacada, onde ela espera
a estrela, onde me escondo para vê-la...
Vai a seu leito e roça no seu lábio
esta flor,
esta pétala de beijo.

Mas, tão de leve que ela não desperte,
e mansamente continue sonhando...



Roteiro de poesia brasileira: anos 60/seleção e prefácio Pedro Lyra; [direção Edla van Steen] - São Paulo: Global, 2011.- (Coleção Roteiro da poesia brasileira).

Filosofia - Pablo Neruda

Fica provada a certeza
da árvore verde na primavera
e do córtex terrestre
- alimentam-nos os planetas
apesar das erupções
e o mar nos oferece peixes
apesar de seus maremotos -
somos escravos da terra
que também é dona do ar.

Passeando por uma laranja
eu passei mais de uma vida
repetindo o globo terrestre
- a geografia e a ambrosia -
os jogos cor de jacinto
e um cheiro branco de mulher
como as flores da farinha.

Nada se consegue voando
para se escapar deste globo
que te aprisionou ao nascer.
E há que confessar esperando
que o amor e o entendimento
vêm de baixo, se levantam
e crescem dentro de nós
como cebolas , azinheiras,
como tartarugas ou flores,
como países, como raças,
como caminhos e destinos.



Neruda, Pablo, 1904-1973.
O coração amarelo/Neftali Ricardo Reyes; tradução Olga Savary - Porto Alegre: L&PM, 2010.

Integrações - Pablo Neruda

Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,
teu colorido e tua guitarra
como estão juntos os países
nas lições escolares
e duas comarcas se confundem
e há um rio perto de um rio
e crescem juntos dois vulcões.

Perto de ti é perto de mim
e longe de tudo é tua ausência
e é cor de argila a lua
na noite do terremoto
quando no terror da terra
juntam-se todas as raízes
e ouve-se soar o silêncio
com a música do espanto.
O medo é também um caminho.
E entre suas pedras pavorosas
pode marchar com quatro pés
e quatro lábios, a ternura.

Porque sem sair do presente
que é um anel delicado
tocamos a areia de ontem
e no mar ensina o amor
um arrebatamento repetido.


Neruda, Pablo, 1904-1973.
O coração amarelo/ Neftali Ricardo Reyes; tradução de Olga Savary - Porto Alegre: L&PM, 2010.