domingo, 27 de dezembro de 2009

Os poemas - Mario Quintana

Os poemas são pássaros que chegam
Não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

O Auto-retrato - Mario Quintana

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas  que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
corrigido por um louco!

Amar - Mario Quintana

Fechei os olhos para não te ver e minha boca para não dizer...E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei, e da minha boca fechada nasceram sussurros e palavras mudas que te dediquei...O amor é quando a gente mora um no outro.

Quando eu for, um dia desses... - Mario Quintana

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso.

Quem faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Somos donos de nossos atos... - Mario Quintana

 Somos donos de nossos atos,
mas não somos de nossos sentimentos;
Somos culpados pelo que fazemos,
mas não somos culpados pelo que sentimos;
Podemos prometer atos,
mas não podemos prometer sentimentos.
Atos são pássaros engaiolados,
sentimentos são pássaros em vôo.

Quem sabe um dia... - Mario Quintana

Quem sabe um dia
Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um  mês
Um ano
Um(a) vida!

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois.

Quem sabe um dia... - Mario Quintana

Da felicidade - Mario Quintana

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte,os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

Do amoroso esquecimento - Mario Quintana

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

O meu amor...

 O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá)
Canta e vai-se embora
Outra nem isso,
Mal chega, vai-se embora
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo
As andorinhas é que mudam. 

O meu amor...

Amor - Mario Quintana

Quando duas pessoas fazem amor
não estão apenas fazendo amor.
Estão dando corda ao relógio do mundo.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Receita de Ano Novo - Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
Para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas? )

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta,
não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem que merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Liberdade - Miguel Torga

- Liberdade, que estáis no céu...
Rezava o padre nosso que sabia
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

- Liberdade, que estáis na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estáis em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Pedagogia - Miguel Torga

Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende.
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de-ser !

Quase um poema de amor - Miguel Torga

Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.

Viagem - Miguel Torga

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro,
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
( Só nos é concedida
Esta vida
Que temos
e é nela que é preciso
Procurar
 O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Num errante e dada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

A espiral - Miguel Torga

Um dia é suficiente para amar todas as coisas como um deus
e em todas as coisas dar a vida
pelo brilho sereno de um olhar.

Ao amor antigo - Carlos Drummond de Andrade

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Amar - Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar   também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e   amar o inóspito, o cru,
Um vaso sem flor, um chão de ferro ,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a  uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Amor bastante - Paulo Leminski

Quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante.

Abaixo o além - Paulo Leminski

de dia
céu  com nuvens
ou céu sem

de noite
não tendo nuvens
estrelas
sempre tem.

quem me dera
um céu vazio
azul isento
de sentimento.

Você está tão longe... - Paulo Leminski

Você está tão longe
que às vezes penso
que nem existo

nem fale em amor
que amor é isto.

Um bom poema leva anos... - Paulo Leminski

Um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

É tudo o que sinto - Paulo Leminski

Inverno
É tudo o que sinto
Viver
É sucinto.

Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar

Quando você for embora,
moça branca como a neve
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Despedida - Ferreira Gullar

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.

Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.
.

Desencanto - Manuel Bandeira

Eu faço versos como quem chora
De desalento...de desencanto...
Fecha o meu livro, se agora
não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa...remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

-  Eu faço versos como quem morre.

Traduzir-se - Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte é estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

OVNI - Ferreira Gullar

Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos )
reflito o espelho

Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
reflete a parede
a janela aberta

Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
( eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde tempo
deu defeito.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Lua adversa - Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fase de vir para a rua...
Perdição da minha vida
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Para a manhã - Miguel Torga

Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?
Acordaste e és bela
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado
Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Gozo e dor - Almeida Garret

Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
- Não. Ai! não; falta-me a vida,
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.
Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou,
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida - ou a razão.

Sossega coração... - Fernando Pessoa

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição dos seres.
Mas pobre sonho o que\ só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme.
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Sossega coração e adormeça!

Tenho tanto sentimento... - Fernando Pessoa

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Os versos que te fiz - Florbela Espanca

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados  em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

domingo, 20 de dezembro de 2009

Saudade de Manuel Bandeira - Vinícius de Moraes

Não foste apenas um segredo
De poesia e de emoção
Foste uma estrela em meu degredo
Poeta, pai! áspero irmão.

Não me abraças-te só no peito
Puseste a mão na minha mão
Eu, pequenino - tu, eleito
Poeta, pai! áspero irmão.

Lúcido, alto e ascético amigo
De triste e claro coração
Que sonhas tanto a sós contigo
Poeta, pai, áspero irmão?

Resposta a Vinícius - Manuel Bandeira

Poeta sou; pai, pouco; irmão mais.
Lúcido sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
- Ah feliz como jamais fui! -
Arrancando do coração
- Arrancando pela raiz -
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

O rio - Manuel Bandeira

Ser como o rio que deflui Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem  mágoa
Nas profundidades tranquilas.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Tu... - Pablo Neruda

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Não te amo como se fosses rosa de sal... - Pablo Neruda

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravo que propagam o fogo:
amo-te como se amam certamente coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,

a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.

Amar é a única inocência... - Fernando Pessoa por Alberto Caeiro

(...)
Creio no mundo como um malmequer,
Porque o vejo.    
Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia, tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Para que se justifique a nossa vida... - Natália Correia

(...)
Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Vinícius de Moraes

Não maltrate um coração que dedicou ao seu sorriso as suas batidas !

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Vôo - Cecília Meireles

Alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras
como águias imensas.
Como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.

Oh! alto e baixo
em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós
as palavras voam.

E às vezes pousam.

Anatomia - Cecília Meireles

É triste ver-se o homem por dentro:
tudo arrumado, cerrado, dobrado
como objetos num armário.

A alma , não.

É triste ver-se o mapa das veias,
e esse pequeno mar que faz trabalhar seus rios
como por obscuras aldeias
indo e vindo, a carregar vida, estranhos escravos.

Mas a alma?

É triste ver-se a elétrica floresta
dos nervos: para estrelas de olhos e lágrimas,
para a inquieta brisa da voz,
para esses ninhos contorcidos do pensamento.

E a alma?

É triste ver-se que de repente se imobiliza
esse sistema de enigmas,
de inexplicado exercício,
antes de termos encontrado a alma.

Pela alma choramos.
Procuramos a alma.
Queríamos alma.

Canções - De que são feitos os dias? - Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
-De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias,
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...

Canção quase melancólica - Cecília Meireles

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...

Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.

Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?

Quando vierem fechar os meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

História de uma letra - Cecília Meireles

Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.
A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham  um idioma.
Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas  que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil.
Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc...
As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de talento, de prestígio - e o povo classifica essa situação, que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.
O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção.
Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais.
Penetrando mais no estudo de todas essas supertições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem as mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas consequências ocultas.
Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental - que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais.
E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos,com todas as suas inesperadas trajetórias.
E há os que lêem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fìgado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela...
Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada.Não compreendo por que as pessoas crêem numas coisas e noutras não. Tudo é crível. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.
Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca, chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar.
Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta, pus-me a procurá-la.
Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos que justificassem a conspiração que se fazia contra mim.
Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido, nem vestido marrom nem gato preto nem número fatídico na porta.
E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido - e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas luzes é pela timidez em não acreditarem o momento propício - passei a analisar o meu nome.
Esqueci de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.
Foi nessa ocasião que me  explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos.
Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.
Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo.
Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra.
Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado.
Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ou sem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade.
Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome.
Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos.
Quanto as coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: "Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?" Não,as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa...
Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: " Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te  durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me...Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas ... Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome...
Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus"
Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim, - mas, um parente, um amigo extraordinário.
A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar.
E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Coração - Guilherme de almeida

Lembrança, quanta lembrança
Dos tempos que lá se vão!
Minha vida de criança,
Minha bolha de sabão!

Infância, que sorte cega,
Que ventania cruel,
Que enxurrada te carrega,
Meu barquinho de papel?

Como vais,como te apartas,
E que sozinho que estou!
Ó meu castelo de cartas,
Quem foi que te derrubou?

Tudo muda, tudo passa
Neste mundo de ilusão;
Vai para o céu a fumaça,
Fica na terra o carvão.

Mas sempre, sem que te iludas,
Cantando num mesmo tom,
Só tu, coração, não mudas
Porque és puro e porque és bom! 

De que são feitos os dias? - Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
 - De pequenos  desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias,
 - do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em  duros desenlaces
e em sinistras alianças...

Lua adversa - Cecília Meireles

Tenho fases como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vem,
no secreto calendário
que um astrólogo  arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua....)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia ,
o outro desapareceu...

domingo, 6 de dezembro de 2009

Felicidade - Guilherme de Almeida

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, filha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!

O ano passado - Carlos Drummond de Andrade

O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.

Canto de Natal - Manuel Bandeira

O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer o bem.

Nasceu sobre palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.

Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.

Versos de Natal - Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

Uma história de Natal - Moacyr Scliar

  A voz de Belém de Nazaré foi um dos primeiros jornais na história da humanidade; se ainda estivesse em circulação, estaria completando 2000 anos. Mas a verdade é que não durou mais que alguns números.
O jornal não era impresso; a tecnologia para isso não havia sido inventada. Os cem exemplares que constituíam a tiragem eram copiados a mão, em pergaminho, por uma numerosa equipe de escribas. Os leitores eram poucos, mas selecionados: o rei Herodes, por exemplo, estava entre os assinantes, bem como autoridades romanas.
O proprietário, que era também o editor e o único repórter, esforçava-se por obter o que hoje seria denominado de furos de reportagem. Não era muito fácil. Belém de Nazaré era uma cidade pequena e nada tinha a ver com o poder. O homem sonhava  com um grande acontecimento, que lhe permitisse colocar uma manchete em letras garrafais."É o fim do Império Romano", seria uma interessante, mas ainda pouco provável. De modo que pressionava continuamente seus informantes a caçarem novidades.
Certa manhã, um deles veio procurá-lo com uma notícia verdadeiramente sensacional: três reis tinham aparecido em Belém, soberanos vindos de locais longínquos. A princípio o jornalista não acreditou: três reis em Belém? Três? Decidiu imediatamente procurá-los.
Quando os encontrou, já estavam de partida e não queriam falar à imprensa. Mas ele insistiu e os potentados acabaram contando: tinham vindo à cidade , guiados por uma estrela, para ver um bebê que acabara de nascer e que mudaria os rumos do mundo.
Ele não acreditou, claro. Três reis andariam quilômetros e quilômetros por causa de uma criança? Absurdo.Certamente havia uma história por trás daquela viagem, e essa história só podia ser uma intriga política. Talvez os três reis estivessem tramando uma aliança para dominar a região. Talvez estivessem em vias de estabelecer um novo poder. Os soberanos, contudo, insistiam em sua versão.
Frustrado embora, não deixou de escrever uma matéria a respeito, falando no mistério político representado pela vinda dos três monarcas. Não se deu, claro, ao trabalho de ir à manjedoura onde eles diziam ter estado.
Mas mesmo que fosse lá , e mesmo que visse o recém-nascido, não daria importância ao fato. Pobres às vezes nascem em lugares estranhos. Como uma manjedoura em Belém de Nazaré.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Essa história de Papai Noel... - Cecília Meireles

Todas as crianças amanheceram ontem preocupadas com o que iam encontrar nos sapatos. E, como todos sabem, apesar de a data celebrar o nascimento de um dos grandes defensores da igualdade humana, os resultados verificados na prova prática dos sapatos foram os mais desiguais possível.
Não é isso que vamos pretender resolver aqui, embora acreditemos que a obra da educação tem horizontes infinitos, e esse é um dos problemas que ela está incumbida de pôr nos devidos termos.
Vamos considerar apenas essa história do Papai Noel, personagem maravilhoso que entra invisível   no quarto das crianças para lhes pôr presentes nos sapatos.
Se estudarmos o caso, como recomenda Piaget, na sua verificação das representações infantis, acompanhando e favorecendo a revelação desejada sem a sugerir, para não a viciar, observaremos que as crianças não possuem conceito definido acerca do personagem fabuloso da noite de Natal. À alegria turbulenta e absorvente dos brinquedos a receber, ou recebidos, associam apenas a imagem convencional do velho friorento, de roupa vermelha orlada de arminho, barba branca, saco às costas, que as revistas e os jornais reproduzem, e a família mostra nos anúncios, sorrindo com malícia da inocência dos pequeninos.
Eu creio que o território da imaginação infantil tem uma localização à parte, nas suas faculdades. Está isento de consequências práticas, como se as imaginárias estivessem previamente a salvo de interferências da realidade e do contato com elas. Assim, as histórias maravilhosas parece-me que se acumulam, junto com os sonhos e as visões indefinidas da criança, uma região isolada da sua vida interior, não são absorvidas do mesmo modo que os fatos concretos; referem-se a interesses de outra espécie e não correspondem a uma atividade exterior. Por isso, também, é que, através do meu convívio com as crianças, inclino-me a supor que a ficção do Papai Noel é, para a infância , de natureza vaga e imprecisa, como que diluída numa generalização, e dissipada facilmente pela realidade nítida dos brinquedos. As crianças até cinco ou seis anos não tem preocupação da existência desse personagem, aceitam-no como um nome, uma palavra, - como os nomes dos meses e dos dias.
Avanço isto com a máxima precaução: e gostaria que mães e professoras procurassem interpretar bem a noção de seus filhos e alunos, a esse respeito.
Mas, depois dos seis anos, nos dias de hoje, dificilmente uma criança acredita no personagem misterioso do Natal. E, quando as assalta a primeira dúvida, correm ao papai e à mamãe para lhes perguntarem a verdade. Aí é que se comete o erro lamentável. Porque todos os pais estão convencidos - e com as melhores intenções - de que fazem bem à criança dizendo-lhes que existe esse homem sobrenatural. Muitos, eu bem sei que já não querem dizer a verdade porque tem pena de arrancar da criança o que eles supõem ser uma deliciosa ilusão, uma autêntica forma de felicidade - quando nunca se detiveram a analisar como é que funciona a alma infantil e a repercussão interior dessas coisas!
Outros sustentam a ficção  com alegria, certos de que estão agindo muito normalmente, como todo o mundo faz...(O conforto da rotina...)
Dá-se, então, o seguinte: ou dizem a verdade à criança, ou ela malgrado o segredo, adivinha-a. Mas, de qualquer das duas maneiras, a criança compreende subitamente: que se pode dizer a alguém uma coisa que não é verdadeira...Que se pode alimentar essa falsidade anos a fio, repetidas vezes, com gravidade e convicção...Que os pais, os parentes, os amigos mais íntimos e mais queridos, isto é, todos aqueles em que ela confia, a quem se abandona, com a sua inocência e a sua pureza são os mesmos que sustentam essas coisas mentirosas...
Essa é que é a grande desilusão das crianças no dia que descobrem a invenção do Papai Noel...Não é a tristeza de perderem uma coisa maravilhosa...E, aliás, há coisas realmente maravilhosas, insondáveis, que se podem dar à criança, se a questão é de coisas sutis... - o movimento dos mundos, a fecundidade da terra, as origens da vida, as cores, todas as leis físicas.
O desencanto, o mudo desencanto dos olhos das crianças que sabem da verdade do Papai Noel é a amargura do contato com os homens, uma presciência da deformação da vida, uma tristeza de ter sido assunto de mofa...Uma consciência de humilhação, e um sentimento de desconfiança...Esse é o ruim presente que os pais colocam nos sapatinhos dos filhos...

(Rio de Janeiro, Diário de Notícias,26 de Dezembro de 1930) 

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Frases -Clarice Lispector

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido.Eu não: quero uma verdade inventada."

" Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir.Não sou pretensiosa.Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando".

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o´defeito que sustenta nosso edifício inteiro"

"Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece, como eu mergulhei. Pergunte, sem querer a resposta como estou perguntando. Não se preocupe em "entender". Viver ultrapassa todo o entendimento."

"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio dos outros."

'Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas as vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: Quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida."