domingo, 13 de junho de 2010

Orfeu - Helder Macedo

Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a preze como o início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
por já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.

Torre de menagem - Raul de Carvalho

...Deus quis que eu plantasse a minha voz
Na terra árida
Que os meus dedos abrissem
O caminho à água
Que a minha boca desfolhasse
Em toda a parte a música

Em cada voz o lábio e a cereja
Em cada aceno de outra mão
A minha mão
Ah ninguém pode
Roubar-me à livre
Modulação do amor
Meu coração aprende
Desde manhã aprende
A pulsar continuamente
Pelos que se amam
Em toda a parte meu coração encontra
Motivos para ser forte e doce
Cada palavra ou cada face me devolve
O rosto inteiro da manhã

Com versos eu devolvo ao Universo
A confiança que Deus depositou em mim.

Em busca da beleza lV - Fernando Pessoa

Leva-se longe, meu suspiro fundo,
Além do que deseja e que começa -
Lá muito longe, onde o viver se esqueça
Das formas metafísicas do mundo.

Aí que o meu sentir vago e profundo
O seu lugar exterior conheça;
Aí durma em fim, aí em fim faleça
O cintilar do espírito fecundo.

Aí... mas de que serve imaginar
Regiões onde o sonho é verdadeiro,
Ou terras para o ser adormentar?

É elevar de mais a aspiração
E, falhado esse sonho derradeiro,
Encontrar mais vazio o coração.

Em busca da beleza lll - Fernando Pessoa

Só quem puder obter a estupidez
Ou a loucura pode ser feliz.
Buscar, querer, amar...tudo isto diz
Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

A Estupidez achou sempre o que quis
No círculo banal da sua avidez;
Nunca aos loucos o engano se desfez
Com quem um falso mundo seu condiz.

Há dois males: verdade e aspiração,
E há uma forma só de os saber males -
É, vivendo-lhes o ser, saber que são

Um o horror real, o outro o vazio -
Horror não menos, dois como que vales
Ao pé dum monte que ninguém subiu. 

Hoje, dia 13 de junho, aniversário de Fernando António Pessoa

                                      Os symbolos / O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida é dura.
Nada na alma lhe diz
Mas que a lição da raiz -
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou.
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grecia, Roma, Cristandade,
Europa - os quatro se vão
Para onde vae toda edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Soneto à maneira de Camões - Sophia de Mello Breyner Andresen

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que m'o dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá se não por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas do oceano.

Gota de água - António Gedeão

Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O suéter - Clarice Lispector

     Aconteceu-me ganhar um suéter. Até aí tudo parece simples. Mas não é.
     Quem me mandou o suéter foi uma moça que não conheço. Sei, por intermédio de um amigo comum, que a moça desenha extraordinariamente bem. Mora em São Paulo. Quando esteve no Rio almoçou com nosso amigo. Estava com um suéter tão bonito que meu amigo achou que ficaria bem em mim e encomendou um exatamente igual ao dela. Aconteceu, porém, que a moça é minha leitora - ou estou enganada? - e quando soube para quem era o presente fez questão de ser ela própria a dá-lo a mim. O amigo aceitou.
     E eis-me dona de repente do suéter mais bonito que os homens da terra já criaram. É de um vermelho-luz e parece captar tudo o que é bom para ele e para mim. Esta é a sua alma: a cor. Estou escrevendo antes de sair de casa, e com o suéter. Aliada à sua cor de flama e chama, ele me foi dado com tanto carinho que me envolve toda e tira qualquer frio de quem se sinta solitária. É uma carícia de grande amizade. Hoje vou sair com ele pela primeira vez. Está ligeiramente justo demais, porém é possível que assim deva ser: admitindo como gloriosa a condição feminina. Terminada esta nota vou me perfumar com um perfume que é meu segredo: gosto das coisas secretas. E estarei pronta para enfrentar o frio não só o real como os outros.  
      Sou uma mulher a mais.

Sim e Não - Clarice Lispector

     Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós.

O meu próprio mistério - Clarice Lispector

     Sou tão misteriosa que não me entendo.

A opinião de um analista sobre mim - Clarice Lispector

    Por coincidência, tive e tenho amigas que são ou foram analisadas pelo Dr. Lourival Coimbra, psicanalista do grupo de Melanie Klein. As conhecidas e amigas me contaram que falaram de mim a ele. E imagino como Dr. Lourival deve estar farto de ouvir meu nome. Há dias uma das analisadas por ele esteve aqui em casa e resolvi, como compensação ao desgaste dos ouvidos do analista sobre mim, enviar-lhe um livro meu de contos, Laços de família. Na dedicatória pedi desculpas pela letra que não está boa desde que minha mão direita sofreu o incêndio.
    Dias depois a moça apareceu em casa para tomar um café comigo e perguntei-lhe se havia entregue o livro a Dr. Lourival. Ela disse que sim e que, ao ler a dedicatória, ele fizera um comentário. Fiquei curiosa, quis saber o que ele dissera. E fiquei sabendo que , ao ler a dedicatória, Dr. Lourival tinha dito: "Clarice dá tanto aos outros, e no entanto pede licença para existir."
     Sim, Dr. Lourival. Peço humildemente para existir, imploro humildemente uma alegria, uma ação de graça, peço que me permitam viver com menos sofrimento, peço para não ser experimentada pelas experiências ásperas, peço a homens e mulheres que me considerem um ser humano digno de algum amor e de algum respeito. Peço a bênção da vida.

Aprendendo a viver - Clarice Lispector

     Thoreau era um filósofo americano que, entre outras coisas mais difìceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal,
escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
     Thoreau , por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas "melhore o momento presente", exclamava. E acrescentava: "Estamos vivos agora." E comentava com desgosto: "Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.
     A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras   é que você existe.
     Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
     Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
     Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam - ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos - ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
     Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. "É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber."
     E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: " Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões  e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?" Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o corpo. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
     Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: "A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos." É verdade: mesmos as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois "o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino".
     E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso, devia-se abrandar o julgamento de si próprio. "Creio", escreveu, " que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força." E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas - e quem de nós  não faz isso? -, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
     E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vem complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
     Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do "mundo livre". Além disso, procurava a salvação pelo risco - sem o qual a vida para ele não valia a pena - " e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas" (o grifo é meu).
     Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. "A avareza e o tédio danam o mundo." "Dois ramos, enfim, do egoísmo", acrescenta o autor do artigo.
     Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
     Feliz Ano novo.
    

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Entrada - Manoel de Barros

    Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem. 

sábado, 5 de junho de 2010

Escrever ao sabor da pena - Clarice Lispector

    Esta frase me ficou na memória e nem sequer sei de onde ela veio. Para começar, não se usa mais pena. E depois, sobretudo, escrever à máquina, ou com o que seja não é um sabor. Não, não, estou me referindo a procurar escrever bem: isso vem por si mesmo. Estou falando de procurar em si próprio a nebulosa que aos poucos se condensa, aos poucos se concretiza, aos poucos sobe à tona - até vir como num parto a primeira palavra que a exprima.

Loucura diferente - Clarice Lispector

    A obra de arte é um ato de loucura do criador. Só que germina como não-loucura e abre caminho. É, no entanto, inútil planejar essa loucura  para chegar à visão do mundo. A pré-visão desperta do sono lento da maioria dos que dormem ou da confusão dos que adivinham que alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer. A loucura dos criadores é diferente da loucura dos que estão mentalmente doentes. Estes, entre outros motivos que desconheço, erraram no caminho da busca. São casos para médicos, enquanto os criadores se realizam com o próprio ato de loucura.

Mas há a vida - Clarice Lispector

    Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.

Rosas Silvestres - Clarice Lispector

    Só esta expressão rosas silvestres já me faz aspirar o ar como se o mundo fosse uma rosa crua. Tenho uma grande amiga que me manda de quando em quando rosas silvestres. E o perfume delas, meu Deus, me dá ânimo para respirar e viver.
    As rosas silvestres tem um mistério dos mais estranhos e delicados: à medida que vão envelhecendo vão perfumando mais. Quando estão à morte, já amarelando, o perfume fica mais forte e adocicado, e lembra as perfumadas noites de lua de Recife. Quando finalmente morrem, quando estão mortas, mortas - aí então, como uma flor renascida no berço da terra, é que o perfume que se exala delas me embriaga. Estão mortas, feias, em vez de brancas ficam amarronadas. Mas como jogá-las fora se, mortas, elas tem a alma viva? Resolvi a situação das rosas silvestres mortas, despetalando-as e espalhando as pétalas perfumadas na minha gaveta de roupa.
    Da última vez que minha amiga me mandou rosas silvestres, quando estavam morrendo e ficando mais perfumadas ainda, eu disse para meus filhos:
    Era assim que eu queria morrer: perfumando de amor. Morta de exalando a alma viva.
    Esqueci de dizer que as rosas silvestres são de planta trepadeira e nascem várias no mesmo galho. Rosas silvestres, eu vos amo.Diariamente morro por vosso perfume.

Trecho - Clarice Lispector

    Agora eu conheço esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva. De estar viva - senti - terei que fazer o meu motivo e tema. Com delicada curiosidade, atenta à fome e à própria atenção, passei então a comer delicadamente viva os pedaços de pão.

Sem nosso sentido humano - Clarice Lispector

    Como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes tivéssemos dado o sentido de nossa esperança e visão humanas? Devia ser terrível. Chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e secavam, e depois ardiam ao sol e se crestavam em poeira. Sem dar ao mundo o nosso sentido humano, como me assusto. Tenho medo da chuva, quando a separo da cidade e dos guarda-chuvas abertos, e dos campos se embebendo de água.

Aprender a viver - Clarice Lispector

    Pudesse eu um dia escrever uma espécie de tratado sobre a culpa. Como descrevê-la, aquela que é irremissível, a que não se pode corrigir? Quando a sinto, ela é até fisicamente constrangedora: um punho fechando o peito, abaixo do pescoço: e aí está ela, a culpa. A culpa? O erro, o pecado. Então o mundo passa a não ter refúgio possível. Aonde se vá e carrega-se a cruz pesada, de que não se pode falar.
    Se se falar - ela não será compreendida. Alguns dirão - "mas todo o mundo..." como forma de consolo. Outros negarão simplesmente que houve culpa. E os que entenderem abaixarão a cabeça também culpada. Ah, quisera eu ser dos que entram numa igreja, aceitam a penitência e saem mais livres. Mas não sou dos que se libertam. A culpa em mim é algo tão vasto e tão enraizado que o melhor ainda é aprender a viver com ela, mesmo que tire o sabor do menor alimento: tudo sabe mesmo de longe a cinzas.

Ir contra uma maré - Clarice Lispector

    Lutei toda a minha vida contra a tendência ao devaneio, sempre sem jamais deixar que ele me levasse até as últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a doce corrente tira parte de minha força vital. E, se lutando contra o devaneio, ganho no domínio da ação, perco interiormente uma coisa muito suave de se ser e que nada substitui. Mas um dia ainda hei de ir, sem me importar para onde o ir me levará.

Dentro sem fora - Ferreira Gullar

A vida está
dentro da vida
em si mesma circunscrita
sem saída.

Nenhum riso
nem soluço
rompe
a barreira de barulhos

A vasão
é para o nada
Por conseguinte
não vasa.

Versos de entreter-se - Ferreira Gullar

À vida falta uma parte
- seria o lado de fora -
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa

e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta

À vida falta uma porta.

Nós, latino-americanos - à Revolução Sandinista - Ferreira Gullar

Somos todos irmãos
mas não porque tenhamos
a mesma mãe e o mesmo pai:
temos é o mesmo parceiro
que nos trai.

Somos todos irmãos
não porque dividamos
o mesmo teto e a mesma mesa:
divisamos a mesma espada
sobre nossa cabeça.

Somos todos irmãos
não porque tenhamos
o mesmo berço, o mesmo sobrenome:
temos um mesmo trajeto
de sanha e fome.

Somos todos irmãos
não porque seja o mesmo o sangue
que no corpo levamos:
o que é o mesmo é o modo
como o derramamos.

Poema poroso - Ferreira Gullar

De terra te quero;                          poema,
e no entanto iluminado.

                                   De terra
o corpo perpassado de eclipses,
poroso
poema
             de poeira-
             onde berram
suicidas e perfumes;
                               assim te quero
sem rosto
e no entanto familiar
                            como o chão do quintal
(sombra de todos nós depois
                  e antes de nós
quando a galinha cacareja e cisca).

                              De terra,
onde para sempre se apagará
                 a forma desta mão
                 por ora ardente.

Como essas coisas começam - Guilherme de Almeida

Era uma vez... Mas eu não sei como, onde, quando, por que foi isso. Eu sei que ela estava dançando.
O jazz-band esgarçava o véu de uma doidice.
Ela olhou-me demais - e um amigo me disse:
- "Cuidado! É sempre assim que essas coisas começam!"

Estas frases banais, vazias, me interessam,
porque elas sempre tem, à flor de certas bocas,
a ressonância musical das coisas ocas.

Deixei meu sonho ecoar dentro daquela frase:
e senti, sem querer, necessidade quase
de começar alguma coisa...

Ontem, o amigo
- o precioso banal - encontrou-se comigo.
Ele pôs num sorriso esta frase indiscreta:
- "Então, quando é que acaba essa história, meu poeta?"

A espera - Guilherme de Almeida

Vem... Não vem... - Olho a rua: é outono. E o outono
tem um grande prestígio emocional:
vem todo cheio de alma e de abandono
e entra em meus nervos lânguidos de sono,
como a ponta excitante de um punhal!

Vem... Não vem... - Na paisagem amarela
da rua doente há um contagioso spleen.
Fico auscultando o vidro da janela:
passa um vento nervoso - e eu penso nela;
voa uma folha morta - e eu penso em mim.

Vem... Não vem... - Cada voz perdida, ou cada
figurinha ligeira de estação
toda afogada em peles, na calçada,
ou cada passo nos degraus da escada
marca o compasso do meu coração.

Vem... Não vem... - E esta frase ingênua esvoaça
no ar, desfolhada como um malmequer.
Tamborilando os dedos na vidraça,
eu conto um verso - e no meu verso passa
timidamente um nome de mulher.

Vem... Não vem... Vem... Não vem... - A tarde desce
a mão cansada de dizer adeus...
E eu continuo a minha pobre prece:
- Que seria de mim, se ela não viesse?
E que será quando ela vier, meu Deus?!

NÓS - Vlll - Guilherme de Almeida

Lês um romance. Eu te contemplo. Ondeia,
lá fora, um vento muito leve e brando;
cheira a jasmins o varandim, brilhando
ao doentio clarão da lua cheia.

Vais lendo. E, enquanto tua mão folheia
o livro, eu vejo que, de quando em quando,
estremecendo, sacudindo, arfando,
teu corpo todo num delírio anseia.

Lês. São cenas de amor: o encontro, o ciúme,
idílios, beijos ao luar... Perfume
que sobe da alma, e gira, e se desfaz...

Vais lendo. E tu não sabes que, sozinho,
eu te sigo, eu te sinto, eu te adivinho,
lendo em teus olhos o que lendo estás.

Nós - xxv - Guilherme de Almeida

O nosso ninho, a nossa casa, aquela nossa despretensiosa água-furtada,
tinha sempre gerânios na sacada
e cortinas de tule na janela.

Dentro, rendas, cristais, flores... em cada
canto, a mão da mulher amada e bela
punha um riso de graça. Tagarela,
teu canário cantava à minha estrada.

Cantava... E eu te entrevia, à luz incerta,
braços cruzados, muito branca, ao fundo,
no quadro claro, da janela aberta.

Vias-me. E então, num súbito tremor,
fechavas a janela para o mundo
e me abrias os braços para o amor!

Os últimos românticos - Guilherme de Almeida

Deixas, enquanto o luar branqueia  o espaço,
pela escada de seda, o parapeito...
E vens, leve e ainda quente do teu leito,
como um sono de tule, por meu braço...


Somos o par mais poético e perfeito
dos últimos românticos... Teu passo,
cantando no jardim, marca o compasso
do coração que bate no meu peito.

Depois partes e eu fico. E às escondidas,
sobre a volúpia verde das alfombras,
minha sombra confunde-se na tua...


Ah! pudessem fundir-se nossas vidas
como se fundem nossas duas sombras,
sob o mistério pálido da lua!

Morte -- Guilherme de Almeida

Pois se ela tem que vir, que venha ao menos
num domingo de sol!
Que a manhã seja clara, os céus serenos,
bem alvo o meu lençol!

Alvíssimo: da cor das coisas puras.
Eu gosto dessa cor.
Detesto o negro, o luto, as amarguras,
a tristeza...Que horror!

Que os sinos cantem, nessa madrugada,
bem altos: dlon! dlin! dlan!
E passe muita gente endomingada,
no ar fresco da manhã!

Vestidos claros, de limpeza extrema,
em que o tempo veloz
guarda as dobras e o cheiro de alfazema
das arcas dos avós...

Que perpassem, de leve, nas calçadas,
com muita devoção,
criancinhas saudáveis e enfeitadas,
que vêm da comunhão!

Que desfilem, na rua, as orfãzinhas
de olhar casto e infantil,
nas suas saias muito engomadinhas,
carregadas de anil!

E que as boas velhinhas, escutando
os sinos - dlon! dlin!  dlan! -
passem muito felizes, tropeçando
nos seus chales de lã!

Que haja sol, que haja luz, que haja alegria
no dia em que ela vier!
Porque a terra terá, doce e macia,
um calor de mulher...

E eu passarei, no meio desse povo
religioso e feliz,
endomingado, no meu terno novo,
sapatos de verniz...

Se tudo for assim alegre e puro
no dia em que eu morrer,
eu levarei, no meu caixão escuro,
vontade de viver!

Andorinha - Manuel Bandeira

Andorinha lá fora está dizendo:
-"Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

Sob o cèu todo estrelado - Manuel Bandeira

As estrelas, no céu muito límpido, brilhavam, divinamente distantes.
Vinha da caniçada o aroma amolecente dos jasmins.
E havia também, num canteiro perto, rosas que cheiravam a jambo.
Um vaga-lume abateu sobre as hortênsias e ali ficou luzindo misteriosamente.
A parte as águas de um córrego contavam a eterna história sem começo nem fim
Havia uma paz em tudo isso...
(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de Haydn.)
Tudo isso era tão tranquilo... tão simples...
E deverias dizer que foi o teu momento mais feliz.

A estrada - Manuel Bandeira

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho, Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho
manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos
símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

Hiato - Manuel Bandeira

És na minha vida como um luminoso Poema que se lê comovidamente
Entre sorrisos e lágrimas de gozo...

A cada imagem, outra alma, outro ente
Parece entrar em nós e manso enlaçar
A velha alma arruinada e doente.

  -Um poema luminoso como o mar,
Aberto em sorrisos de espuma, onde as velas
Fogem como garças longínquas no ar...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

As palavras - Jean-Paul Sartre (trecho)

    Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros. Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente Les Contes do poeta Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na "página certa", fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: "O que queres que eu te leia, querido? As Fadas?" Perguntei incrédulo: " As Fadas estão aí dentro?"


Sartre, Jean-Paul, 1905-1980
As palavras / Jean-Paul Sartre; tradução J. Guinsburg. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 - pag.33

Paixões humanas - Padre Antonio Vieira

    "O maior apetite do homem é o desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser."

Fernando Pessoa

Não ser é outro ser

Sou um sujeito cheio de recantos. - Manoel de Barros

Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim.

Descobri aos 13 anos... - Manoel de Barros

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
-Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
  o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
        pode muito que você carregue para o resto da
        vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática.

As coisas não querem mais ser vistas ... - Manoel de Barros

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas
razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul -
Que nem uma criança que você olha de ave.

O rio que fazia uma volta... - Manoel de Barros

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

No Tratado das Grandezas... - Manoel de Barros

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

Prefácio - Manoel de barros

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) -
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
    dependimentos demais
e tarefas muitas -
os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
que as moscas iriam iluminar
   o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas -
passaram essa tarefa para os poetas.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

(Chapter on Indifference or something like that) - Fernando Pessoa (por Bernardo Soares)

    Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque toda a conquista é []
    Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada compete escolher uma das maneiras. Pode viver-se a vida em extremo pela posse extrema dela, pela viagem ulisseia através de todas as sensações vividas, através de todas as formas de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de todas as maneiras.
    Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que ela se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser ciumentos dela por saber ter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que lhe [é] impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga - um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa, relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da actividade e da energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio, a busca do Limite na Proporção Absoluta, por onde a ânsia de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência, sendo toda a ambição não de viver toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação inteligente.
    A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.
    Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.

[] - espaço deixado em branco pelo autor

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. - Fernando Pessoa ( por Bernardo Soares)

    A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida à acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.

O homem não deve poder ver a sua própria cara. Fernando Pessoa (por Bernardo Soares)

    O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
    Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se  baixar para cometer a ignomínia de se ver.
    O criador do espelho envenenou a alma humana.

Cascata - Fernando Pessoa (por Bernardo Soares)

    A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é a de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!
    Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?
    A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?
    Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de idéias nossas no mais directo olhá-las!
    Será Deus uma criança grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa? Tão irreal...
    Lancei-vos, rindo, esta idéia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade?).
E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de mistério...
    Acordo para saber que existo...
    Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.

Irrita-me a felicidade de todos estes homens... _ Fernando Pessoa ( por Bernardo Soares )

    Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna - a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles ( ainda que de outro modo) à alegria e à dor.
    Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!

A literatura, que é a arte casada com o pensamento... - Fernando Pessoa ( por Bernardo Soares)

    A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
    Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
    Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
    Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.