quinta-feira, 3 de junho de 2010

Cascata - Fernando Pessoa (por Bernardo Soares)

    A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é a de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!
    Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?
    A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?
    Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de idéias nossas no mais directo olhá-las!
    Será Deus uma criança grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa? Tão irreal...
    Lancei-vos, rindo, esta idéia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade?).
E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de mistério...
    Acordo para saber que existo...
    Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário