sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Uma carta extraviada - Guilherme de Almeida

Minha única
Sim.É bem verdade. Faz
"tanto tempo, meu Deus, que não escrevo! Mas,
"procure compreender meu silêncio!
"É o meu único bem: é tudo o que
"ainda acho em mim de bom para dar a você.
"O meu silêncio! Pense nele, como eu penso!
"De tudo isto que sou, e que a vida me deu,
"só o meu silêncio é realmente 'meu'.
"Não é o olhar que dispara e vai partir-se contra
"qualquer primeiro obstáculo que encontra...

"Nao é a frase que foge e esvoaça, tonta,
"e vai por em qualquer ouvido o seu gorjeio,
"como uma ave exilada em ninho alheio...
"Não é o gesto que sobe e que desenha no ar
"a alma da gente ante qualquer olhar...
"Não é o beijo que bóia, fútil, sobre o nível
"de qualquer pele, como flor na água sensível...
"Não! É o meu silêncio! O 'meu' silêncio...
"Ah!pense um pouco nele, como eu penso!
"É o olhar que eu não soltei das pálpebras:aquele
"que era da alma - e minha alma precisava dele...
"É a palavra que não feriu nenhum ouvido,
"porque era cada sílaba o batido
"de um pobre coração em sobressalto:
"e o coração não sabe falar alto...
"É o gesto que o meu corpo - único sonho seu -
"sonhou:e, por ser sonho, nunca'aconteceu'...
"É o beijo que ficou, inerte e trêmulo, entre
"os meus lábios, erguendo um gládio ardente,
"proibitivo como um Anjo à frente
"de um Paraíso Perdido...
O 'meu' silêncio!
"Ah! pense um pouco nele, como eu penso!"


[Essa é a carta extraviada:a que o Acaso divino
não deixou que chegasse ao seu destino,
para que nunca, nunca se perdesse,
quebrando o encanto bom de um silêncio como esse].

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