quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ama teu ritmo... Rubén Dario (Trad. Antonio Cícero)

Ama teu ritmo e ritma tuas ações
sob sua lei, assim como teus versos;
tu és um universo de universos,
e tua alma uma fonte de canções.

A celeste unidade que supões
fará brotar em ti mundos diversos,
e, ao ressoar teus números dispersos,
pitagoriza entre as constelações.

Escuta essa retórica divina
do pássaro do ar e a noturna
irradiação geométrica adivinha;

mata essa indiferença taciturna
e pérola a pérola cristalina
engasta onde a verdade entorna a urna.

Dario Rúben. Y una sed de ilusiones infinita. Edicio e introduccion de Alberto Acereda. Barcelona: Lumen, 2000.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Lua adversa - Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vem,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para seu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Papéis VI - Cecília Meireles

Minha infância foi sobre um velho tapete oriental.
Nele aprendi a beleza das cores.
Nele sonhei com as raízes do azul e do encarnado.
E sempre me pareceu que o desenho era uma escrita:
que o tapete falava coisas,
- eu é que ainda não o podia entender.


Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].
-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem - Cecília Meireles

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza afêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.

Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.

E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de
riso e pedras.

Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.

De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano

permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.

Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar].-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A criança que pensa - Fernando Pessoa ( por Alberto Caeiro)

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe,
Sabe como é que as cousas existem, que é que existem,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto.
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Poesia / Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

O que nós vemos das cousas são as cousas - Fernando Pessoa (por Alberto Caeiro)

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso ( tristes de nós trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Poesia / Alberto Caeiro; edição Fernando Cabral Martins, Richard Zenith. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Inesperadamente - Cecília Meireles

Inesperadamente,
a noite se ilumina:
que há outra claridade
para o que se imagina.

Que sobre-humana face
vem dos caules da ausência
abrir na noite o sonho
de sua própria essência?

Que saudade se lembra
e, sem querer, murmura
seus vestígios antigos
de secreta ventura?

Que lábio se descerra
e - a tão terna distância! -
conversa amor e morte
com palavras da infância?

O tempo se dissolve:
nada mais é preciso,
desde que te aproximas,
porta do Paraíso!

Há noite? Há vida? Há vozes?
Que espanto nos consome,
de repente, mirando-nos?
( Alma, como é teu nome?)

Cecília de bolso/Cecília Meireles; [organizador Fabrício Carpinejar]
-Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

Sonhei um sonho - Cecília Meireles

Sonhei um sonho
e lembrei-me do sonho
e esqueci-me do sonho
e sonhei que procurava
em sonho aquele sonho
e pergunto se a vida
não é um sonho que procurava um sonho.

Cecília de bolso/Cecília Meireles;[organizador Fabrício Carpinejar].
- Porto Alegre, RS: L&PM,2010.

sábado, 18 de dezembro de 2010

É preciso parar - Clarice Lispector

Estou com saudade de mim. Ando pouco recolhida, atendendo demais ao telefone, escrevo depressa, vivo depressa. Onde está eu?
Preciso fazer um retiro espiritual e encontrar-me enfim - enfim, mas que medo - de mim mesma.

Aprendendo a viver/Clarice Lispector. - Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Texto de "Água Viva" - Clarice Lispector

A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer.

Água viva: ficção / Clarice Lispector.
-Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

O homem e sua sombra - Affonso Romano de Sant'Anna

Era um homem que tinha uma sombra branca
que de tão branca
ninguém a via.
Mesmo assim ela o seguia
e com ela dialogava.
Tinha-se a impressão
que uma coisa ausente
lhe fazia companhia
o duplicava
- quase seu guia.

Na verdade ele era a sombra
de sua sombra
- a parte da sombra que se via.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco,2005.

Quando Caravaggio descobriu a luz - Affonso Romano de Sant'Anna

Quando Caravaggio descobriu a luz
foi ele que saiu da sombra
de outros quadros
de outras mãos.

Não deve ter sido fácil
esse transcurso
que o digam Rembrandt e Vermeer.

Há sempre o risco da madrugada
quando, enlouquecidas, as cores
transbordam das molduras e dos seus usos.

A tais pintores
o desafio se impõe:
reinventar no claro o seu contrário
e extrair do escuro
seu luminoso discurso.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Vida artística - Affonso Romano de Sant'Anna

Queriam escalar a montanha
como quem fugisse de um afogamento.
Mas ao invés de oferecerem os ombros
para que os pés dos outros se elevassem
puxavam para baixo tentando impedir
que os demais galgassem.

Assim a escalada para cima
era para baixo uma escalada
e os que chegavam ao topo
ao invés de se extasiarem com as alturas
e a beleza dos lugares
rejubilavam-se, por algum tempo
de não terem sido ainda destruídos por seus pares.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco, 2005

domingo, 12 de dezembro de 2010

Quando ela sobrevém - Affonso Romano de Sant'Anna

É isso:
quando ela me sobrevém - a poesia
e pulsa e respira forte
a mão procura o papel
como a agulha aponta o norte.

É isso:
quando me inunda os ossos
tenso, remo com os versos que posso
derramo a alma contida
e o alquebrado pote.

É isso:
quando a poesia revem
carrego papel e lápis pra cama
como quem acomoda e ajeita
o corpo que aquece e ama.

É isso:
quando a poesia se oferta
e a insônia povoa os olhos
atravesso a pele das noites
num ofício de trevas claras.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna.Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Organizar prazeres - Affonso Romano de Sant'Anna

Cortar delicadamente a fruta
e degluti-la
densamente
como se beija a nudez única
da mulher madura.

Organizar os prazeres
olhar a paisagem
a gravura
e atento ao que está fora
concentrar-se no que está
dentro da moldura.

Do papel, a espessura
sobre a qual a mão desliza
e na qual se apura
o que será a imprevista
escritura.

Seguir cada inseto
no galho ou no gramado
com a devoção
dos livros de iluminuras.

Vestígios/Affonso Romano de Sant'Anna. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Certa ferida - Affonso Romano de Sant'Anna

Como a árvore a que cortam um galho
e permanece(aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.

Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.

Uma flor brotava errante
na parte decepada.

Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.


Vestígios/Affonso Romano de sant'Anna.Rio de Janeiro: Rocco,2005.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Também já fui brasileiro - Carlos Drumond de Andrade

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi nas mesas dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho
que minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive um ritmo.
Fazia isto, fazia aquilo.
Meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter o meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

Alguma poesia-O livro em seu tempo/Carlos Drummond de Andrade; organização Eucanaã Ferraz- São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010

Cantiga de viúvo - Carlos Drummond de Andrade

A noite caiu na minh'alma
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...acabou.

Alguma poesia - O livro em seu tempo/Carlos Drummond de Andrade;organização Eucanaã Ferraz- São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.

Blade Runner Waltz - Paulo Leminski

Em mil novecentos e sempre,
Ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao som da valsa
A perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
Ah, não se faz mais tempo
como antigamente
Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.

La vie en close/Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1991.

S.O.S - Mario Quintana

O poema é uma garrafa de naufrágio jogada ao mar.
Quem a encontra
Salva-se a si mesmo...

O livro de haicais/Mario Quintana;São Paulo;Globo, 2009.

O poema - Mario Quintana

O poema
essa estranha máscara
Mais verdadeira do que a própria face...

O livro de haicais/Mario Quintana; São Paulo: Globo, 2009

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Perplexidades - Ferreira Gullar

a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado

Em alguma parte alguma/Ferreira Gullar;2ª ed.- Rio de Janeiro:
José Olympio, 2010

Off Price - Ferreira Gullar

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado

e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


Em alguma parte alguma/Ferreira Gullar; 2ª ed.-Rio de Janeiro: José Olympio, 2010

domingo, 5 de dezembro de 2010

Se vocês não se incomodam - Affonso Romano de Sant'Anna

Se vocês não se incomodam
vou morrer esta noite um pouco mais
Não como quem se vai ou desanima
mas como quem
dá hora extra numa usina.

Se vocês me permitem
morrerei durante o dia um outro tanto
como quem se consome
num trabalho que o fascina.

Não há tristeza nisto.
Desde Ovídio a natureza nos ensina:
a nuvem desmancha-se em outra
sem chorar
e o rio hora nenhuma se arrepende
de seu encontro com o mar.

Lição da pedra - Affonso Romano de Sant'Anna

Muitos, vindos do século 19
foram enterrados no século 20.
Outros
já atravessamos a soleira do 21
mas morreremos antes
que o século chegue ao meio e ao fim.

Alguns, é claro, planejam ir mais longe
e para tanto se exercitam
tomam vitaminas
contando com a sorte postergar a morte.

As pedras ouvem esses projetos.
Elas não almejam isto.
Não almejam
e no entanto
- conseguirão.

Gerações ll - Affonso Romano de Sant'Anna

Se tirarmos
os drogados
os suicidas
os guerrilheiros mortos
os fracassados
os canalhas
os mediocrizados
sobrariam os vitoriosos
e a vida certamente seria linda.

Linda.

- Mas seria vida?

Gerações l - Affonso Romano de Sant'Anna

Ando muito decepcionado com os homens
e comigo.
Com minha geração
em especial.
Íamos salvar o mundo
e falhamos.
Alguns ainda tentam
(Não me iludem)

Merecíamos melhor sorte.
Nós, os ilustres fracassados
- e o povo
que nem se dá conta
que tínhamos projetos ótimos para redimi-lo.

domingo, 10 de outubro de 2010

Falar - Ferreira Gullar

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

A propósito do nada - Ferreira Gullar

sou
para o outro
este corpo esta
voz
sou o que digo
e faço
enquanto passo

mas
para mim
só sou
se penso que sou
enfim
se sou
a consciência
de mim

e quando
vinda a morte
ela se apague
serei o que alguém acaso
salve
do olvido

já que
para mim
(lume apagado)
nunca terei existido

Flagrante - Ferreira Gullar

o meu gato
na cadeira
se coça

corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno

a manhã clara canta na janela

estou eterno

Doída alegria - Ferreira Gullar

Durante anos
foi a minha constante companhia
aonde eu estava
ele vinha
e ronronando
em meu colo se acolhia

Até que um dia...

Faz anos já que a casa está vazia

Mas eis que
inesperado
ele de novo chega
e se deita a meu lado

Não me atrevo
a olhá-lo
pois é melhor não vê-lo
que não vê-lo

Nada pergunto
apenas vivo
a doída ilusão
de tê-lo junto

O som - Ferreira Gullar

o som é da Terra
não há nenhuma música das esferas
como pensou Aristóteles

música barulho
o trepidar cristalino
da água
sob as folhas
é coisa terrestre

o cosmo é um vastíssimo silêncio
de bilhões e bilhões de séculos

nenhum ruído
as estrelas são imensas explosões mudas
um desatino

a matéria estelar
(a explodir)
é silêncio
e energia

Para outros ouvidos talvez
poderia ser o universo
um insuportável barulho;
não para os nossos
terrenos

Viver na Terra é ouvir
entre outras vozes
o marulho
do mar salgado e azul
ouvir a ventania a rasgar-se nos galhos
antes do temporal

só aqui
neste planeta é que
se pode escutar teu límpido gorjeio,
passarinho,
pequenino cantor
da praça do Lido.

A estrela - Ferreira Gullar

Gatinho, meu amigo,
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
coberto de oceanos e montanhas
é menos que um grão de poeira
se comparado a uma delas


Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
querido amigo,
e esses teus olhos azul-safira
com que me fitas

O espaço - Ferreira Gullar

não há espaços iguais

o espaço
entre o núcleo
do átomo
e os eléctrons
nada tem a ver
com o espaço
entre o sol
e os planetas
nem com o espaço
entre
minha mesa de jantar
e as paredes em volta

não há espaço vazio
cada espaço
é feito
dos corpos que estão
nele
que o deformam e o formam
é feito
de suas energias
e cargas elétricas
ou afetos

Dentro - Ferreira Gullar

"O um é um e não é dois"
Parménides, de Platão

estamos dentro de um dentro
que não tem fora

e não tem fora porque
o dentro é tudo o que há

e por ser tudo
é o todo:
tem tudo dentro de si

Até mesmo o fora se,
por hipótese,
se admitisse existir

O que se foi - Ferreira Gullar

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

Toada à toa - Ferreira Gullar

A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.

Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero -
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Soneto a quatro mãos - Vinícius de Moraes com Paulo Mendes Campos

Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-se escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

Soneto de criação - Vinícius de Moraes

Deus te fez numa forma pequenina
De uma argila bem doce e bem morena
Deu-te uns olhos minúsculos de china
Que parecem ter sempre um olhar de pena.

Banhou-te o corpo numa fonte fina
Entre os rubores de uma aurora amena
E por criar-te assim, leve e pequena
Soprou-te uma alma cálida e divina.

Tão formosa te fez, tão soberana
Que dar-te aos anjos por irmã queria
Mas ao plasmar-te a carne predileta

Deus, comovido, te criara humana
E para tua justa moradia
Atirou-te nos braços do poeta.

Soneto do amigo - Vinícius de Moraes

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contem o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Soneto do amor demais - Vinícius de Moraes

Não, já não amo mais os passarinhos
A quem, triste, contei tanto segredo
Nem amo as flores despertadas cedo
Pelo vento orvalhado dos caminhos.

Não amo mais as sombras do arvoredo
Em seu suave entardecer de ninhos
Nem amo receber outros carinhos
E até de amar a vida tenho medo.

Tenho medo de amar o que de cada
Coisa que der resulte empobrecida
A paixão do que se der à coisa amada

E que não sofra por desmerecida
Aquela que me deu tudo na vida
E que de mim só quer amor - mais nada.

Soneto sentimental à cidade de São Paulo - Vinícius de Moraes

Ó cidade tão lírica e tão fria!
Mercenária, que importa - basta! - importa
Que à noite, quando te repousas morta
Lenta e cruel te envolve uma agonia

Não te amo à luz plácida do dia
Amo-te quando a neblina te transporta
Nesse momento, amante, abres-me a porta
E eu te possuo nua e fugidia.

Sinto como a íris fosforeja
Entre um poema, um riso e uma cerveja
E que mal há se o lar onde se espera

Traz saudade de alguma Baviera
Se a poesia é tua, e em cada mesa
Há um pecador morrendo de beleza?

Meus caros, volta-se porque se tem saudade - Vinícius de Moraes

Meus caros, volta-se porque se tem saudade
Porque se foi feliz intimamente
Volta-se porque se tocou num inocente
E porque se encontrou tranquilidade

A despeito da vida que acorrente
Volta-se, volta-se para a sinceridade
Volta-se sempre, tarde ou de repente
Na alegria ou na infelicidade.

E nada como esse apelo da lembrança
Para se transfigurar numa esperança
Essa desolação que uma alma leve

Assim é que, partindo, eu vou levando
Toda a desolação de um até-quando
Num ardente desejo de até-breve.

Natureza humana - Vinícius de Moraes

Cheguei. Sinto de novo a natureza
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singeleza

Vagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesa

Ante a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensar

Que a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar.

O maestro Villa-Lobos fixa-se na eternidade

Na verdade, Mestre, não morreste.
A morte apenas abriu para o teu vulto
O seu nicho de treva, de modo a que melhor pudesses
Brilhar em tua glória. Não precisavas
Da morte para nada.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Tudo se faz de forma assim tão vária - Marcelo Diniz

Tudo se faz de forma assim tão vária
a nunca ser o mesmo que se escreve;
escreve-se porque falar é breve
e, eterna, a lavra quer-se abecedária;

tudo se faz, portanto, involuntária
e cautelosamente, como deve
quem deseja dotar o que é mais leve
de concisão sutil tão necessária;

porque se passe a limpo o repetido
para gravar o travo do que é dito
fixo na cifra e nítido no lido;

faz-se todo, finito após finito
a fim de, a cada surto do sortido,
somar-se ao infinito um outro escrito.

sábado, 2 de outubro de 2010

Todas as namoradas que eu já tive - Vinicius de Moraes

Todas as namoradas que eu já tive
Estão noivas
Uma só dentre todas não está noiva
Casou-se.
Nenhuma se lembra mais de mim
As que tiveram meus beijos evitam meus olhos
As que tiveram minha afeição riem mal de mim
E beijam furtivamente os noivos nos cinemas e nas praias
Todas têm meus sonetos de amor
Com promessas ardentes de constância e fidelidade
Todas têm meu retrato
O retrato do menino risonho que eu já fui
Com todas eu gastei algumas horas do dia
E algumas horas da noite
Todas estão noivíssimas
E são apenas meninas sem juízo fazendo o que querem
Dando aos namorados anteriores a satisfação social do
noivado
E exibindo o noivo aos olhos das moças sem
namorado.

Algumas eu estimei sinceramente
Sem grandes palavras mas com olhares francos
Olhares que eu estudava nos bondes com outras
Para fazê-los ainda mais verdadeiros
Com outras me diverti
Passeando horas e horas braço com braço
Com palavras grandes e pequenos olhares
A todas eu feri inconscientemente
As que eu beijei e as que eu não beijei
As que eu beijei porque um dia não quis beijar
As que eu não beijei porque um dia quis beijar.

Vi-as fugirem todas de mim
E me vi fugindo de todas elas
Vejo-as agora aqui e ali ontem e hoje
A casada, com um filho
As noivas, com brilhos maternais nos olhos
Futuros infelizes para o mundo
Vejo-me por momentos pai de família comprando
brinquedos
E a satisfação de estar só é tão grande
Que no fundo eu estimo sinceramente todas essas meninas
Que estão noivas e serão muito felizes
E a que está casada e não é feliz mas faz que é

E me estimo mais, ainda, a mim próprio

Que estou só, feliz e só, com os meus amigos e com a minha
boemia discreta.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Velhice erótica - Affonso Romano de Sant'Anna

Estou vivendo a glória de meu sexo
a dois passos do crepúsculo.

Deus não se escandaliza com isto.

O júbilo maduro da carne
me enternece.
Envelheço, sim. E
(ocultamente)
resplandeço.

Aprendizados - Affonso Romano de Sant'Anna

Uns aprendem a nadar
outros a dançar, tocar piano,
fazer tricô e a esperar.

Na infância cai-se
para se aprender a andar,
cai-se do cavalo e do emprego
aprendendo a viver e a cavalgar.

Em alguns aprendizados
chega-se à perfeição.

Em alguns.

No amor, não.

Carta aos mortos - Affonso Romano de Sant'Anna

Amigos, nada mudou
em essência.

Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.

Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há recordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

Viajando - Affonso Romano de San'Anna

Antes
a sensação era esta:
o trem passava, passava
levando outros
numa estranha direção
e eu, desatento,
fingia não ver o trem
e brincava
- na estação
Agora
é esta a sensação:
estou no trem
que passa rápido demais
e da janela espio os desatentos
brincando
como se não fossem embarcar jamais
e, no entanto, vão.

Curva natural - Affonso Romano de San'Anna

Estou me inclinando para a terra
sem humilhações.

Não estou me abaixando. Em algum espelho, sim,
me contemplando mais perto.
Da planta dos pés eu sei que algo está brotando.

Curvo-me,
curvo-me,
curvo-me
como quem cumpre um ritual
reunindo as pontas do círculo.
Há qualquer coisa de útero e anel.
Às vezes sou ouro puro. Ouroboros.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Retrato de uma princesa desconhecida - Sophia de Mello Breyner Andressen

Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino.

Eu não vou perturbar a paz - Manoel de Barros

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.

Todos os caminhos - Manoel de Barros

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

Escrever nem uma coisa nem outra - Manoel de Barros

Escrever nem uma coisa
Nem outra -
A fim de dizer todas -
Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

Aprendo com abelhas - Manoel de Barros

Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata - cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão -
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.

Prefiro as linhas tortas como Deus - Manoel de Barros

Prefiro as linhas tortas como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.
Não é por me gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor.
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre-diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A ciência pode classificar e nomear - Manoel de Barros

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Tenho candor por bobagens - Manoel de Barros

Tenho candor
por bobagens.
Quando eu crescer eu vou ficar criança.

Palavras - Manoel de Barros

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério.

Sobre importâncias - Manoel de Barros

Uma rã se achava importante
Porque o rio passava nas suas margens.
O rio não teria grande importância para a rã
Porque era o rio que estava ao pé dela.
Pois pois.
Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata
desterrada no canto de uma rua, talvez para um
fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais
importante do que o esplendor do sol nos oceanos.
Pois Pois.
Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um
prédio que ficava em frente das pombas.
O prédio era de estilo bizantino do século IX.
Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o
prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância das
coisas: alguém sabe?
Eu só queria construir nadeiras para botar nas
minhas palavras.

Tributo a J.G.Rosa - Manoel de Barros

Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J.G.Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.

Poema - Manoel de Barros

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

A disfunção - Manoel de Barros

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1- Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2- Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3- Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4- Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.
5- Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.
6- Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7- Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.

domingo, 12 de setembro de 2010

A lua no cinema - Paulo Leminski

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
-Amanheça, por favor!

Aviso aos náufragos - Paulo Leminski

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

de som a som - Paulo Leminski

de som a som
ensino o silêncio
a ser sibilino

de sino a sino
o silêncio ao som
ensino

Um deus também é o vento - Paulo Leminski

um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
àrvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zaspar

me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar

a este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro

nele creça
até virar vendaval

Das coisas que eu fiz a metro - Paulo Leminski

Das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são

aquelas
em centrímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O fazedor de amanhecer - Manoel de Barros

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas
prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

O amor - Manoel de Barros

Fazer pessoas no frasco não é fácil
Mas se eu estudar ciências eu faço.
Sendo que não é melhor do que fazer
pessoas na cama
Nem na rede
Nem mesmo no jirau como os índios fazem.
( No jirau é coisa primitiva, eu sei,
mas é bastante proveitosa)
Para fazer pessoas ninguém ainda não
inventou nada melhor que o amor.
Deus ajeitou isso para nós de presente.
De forma que não é aconselhável trocar
o amor por vidro.

O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mão disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do
que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando
ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

Exercícios de ser criança - Manoel de Barros

No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes
da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianças.
E ficou sendo.

Comportamento - Manoel de Barros

Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro -
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.

Árvore - Manoel de Barros

Um passarinho pediu a meu irmão para ser a sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
sol, de céu, e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor
o azul.
E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só presta para poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as
árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se
transformara, envaidecia-se quando era nomeada para
o entardecer dos pássaros.
E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos
brejos. Meu irmão agradeceu a Deus aquela
permanência em árvore porque fez amizade com muitas
borboletas.

O fingidor - Manoel de Barros

O ermo que tinha dentro do olho do menino era um
defeito de nascença, como ter uma perna mais curta.
Por motivo dessa perna mais curta a infância do
menino mancava.
Ele nunca realizava nada.
Fazia tudo de conta.
Fingia que lata era um navio e viajava de lata.
Fingia que vento era cavalo e corria ventena.
Quando chegou a quadra de fugir de casa, o menino
montava num lagarto e ia pro mato.
Mas logo o lagarto virava pedra.
Acho que o ermo que o menino herdara atrapalhava
as suas viagens.
O menino só atingia o que seu pai chamava de ilusão.

Formigas - Manoel de Barros

Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho,
São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem São Francisco
de Assis -
Para chegar a Deus.
Formigas me mostraram Ele.

(Eu tenho doutorado em formigas.)

sábado, 4 de setembro de 2010

Bravo!!! A Paulo Autran

Bravo!!! A Paulo Autran

Mar - Sophia de Mello Breyner Andresen

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Testamento - Manuel Bandeira

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Balanço - Carlos Drummond de Andrade

A pobreza do eu
a opulência do mundo

A opulência do eu
a pobreza do mundo

A pobreza de tudo
a opulência de tudo

A incerteza de tudo
na certeza de nada.

Lembrete - Carlos Drummond de Andrade

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

Lição - Carlos Drummond de Andrade

Tarde, a vida me ensina
esta lição discreta:
a ode cristalina
é a que se faz sem poeta.

O órfão - Alberto de Lacerda

O que me falta? Não sei.
Talvez a morte, talvez
uma mão acarinhando
a minha fronte dorida.

Pobres mulheres que tanto
desejáveis ter um filho!
Eu sou, desconhecido, a vossa própria vida.

To night - Alberto de Lacerda

Esta noite vou embebedar os meus navios
Rasgar os meus poemas
E as minhas raras (raríssimas)
Cartas de amor

Esta noite vou ser horrível
Pior do que o costume
Vou desabobadar os céus da minha esperança
Viga por viga estrela por estrela

Esta noite vou embebedar os meus navios
Vou deixar de falar a imensa gente
Vou encontrar um sábio chinês
Que me recitará poemas muito simples
Insuportáveis de tão belos

Esta noite vou destruir mapas antigos
Abrir certas janelas e quebrar
A possibilidade de alguém mais entrar na minha vida

Esta noite vou pedir perdão aos meus amigos
E escrever uma última carta sem a mínima sombra de sentimentalismo.

Esta noite vou embebedar os meus navios.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Quando a lua vier tocar-me o rosto - Ana Hatherly

Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta
marca o fim de um eclipse horário de uma partida iminente
e o tempo apaga a marca dos teus passos por sobre o meu nome.
Contante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo por
sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu
partiste e no meu leito crescem folhas de sangue.
A velocidade do sangue é tu partiste.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres
partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.

Ponto de fuga - João Rui de Sousa

Procuro a minha voz e não a encontro.
Procuro o meu silêncio e não o tenho.
Ao desencontro vem o desencontro,
do maior ao menor é o meu tamanho.

No alto das esferas rolam as esferas,
ermo adormecido, doida escuridão.
Procuro ali a voz e não a encontro.
Procuro o meu silêncio e não mo dão.

A espaços vi tão perto o meu querer,
a dúvida desfeita, puro abraço,
que logo pensei eu que a voz viesse
ou chegasse o silêncio ao meu cansaço.

Mas não. No grande desencanto (e frio)
em que na rua, gasto, me detenho,
procuro a minha voz e não a encontro,
procuro o meu silêncio e não o tenho.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Trechos de Clarice Lispector

Quero Carlos Drummond de Andrade voz de Paulo Autran

Em nós a pressa mora - Rainer Maria Rilke

Em nós a pressa mora.
Mas do tempo ao passar
tal bagatela ignora,
entre o que tem vagar!

Tudo que corre agora
em breve há de acabar:
só o que custa a demora
nos pode consagrar.

Jovem, procura e ousa
- não a velocidade,
o voo tentador...

não, pois tudo repousa
no Eterno: claridade
e sombra, livro e flor.

A solteirona - Rainer Maria Rilke

Leve, como após a morte,
as luvas e o lenço toma.
Da cômoda, um cheiro forte
suplanta o dileto aroma

tão próprio, de antigamente.
Já vaidosa não indaga
( a algum remoto parente):
- Que tal? - e em sonhos divaga

na alcova, que assim bonita
conserva e trata e aprimora:
porque certamente a habita
a mesma moça de outrora.

O duplo - Ferreira Gullar

Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu

e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto

pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto

mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco

Registro - Ferreira Gullar

À janela
de meu apartamento
à rua Duvivier 49
(sistema solar, planeta Terra,
Via Láctea)
limpo as unhas da mão
por volta das quatro e quarenta da tarde
do dia 2 de dezembro de 2008
enquanto
na galáxia M 31
a 2 milhóes e 200 mil anos-luz de distância
extingue-se uma estrela

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Cada qual - Affonso Romano de Sant'Anna

Cada amor é outro
recomeço. Para alguns
tropeço.

Cada corpo é um princípio,
para alguns a porta
do precipício.

Cada vida penetrada
é um edifício, entrada
que pode dar
numa cidade de mil portas
ou, então, em nada.

Meu cão - Affonso Romano de Sant'Anna

Meu cão ouve comigo
o adágio da 6º Sinfonia de Beethoven.
Gosta de música meu cão.

Deitado no tapete
ele respira no ritmo sonoro da orquestra
apascenta-se e chega a dormir ao som dos violinos.

O adágio continua.
Agora
foi uma borboleta que veio ouvir Beethoven
pousando na vidraça.

O cão, a borboleta e eu,
enquanto ao longe, na montanha, uma nuvem
se desfaz
com a imponderável melodia.

Se estivesses aqui - Affonso Romano de Sant'Anna

Se estivesses aqui
eu não estaria usando esse pronome "tu", tão solene.
Tomaria teu/seu corpo intimamente
e saberia olhar o mundo pela primeira vez
se estivesses aqui.

Na tua ausência
olho o que inutilmente expõe-se
nas vitrinas-museus-flores-detalhes de pessoas nos cafés.

Eu teria tantos olhos
se estivesses aqui.

Faltam-me
tua alma de prata e teu olhar de jade,
aquele olhar
- que me susteve
na escura noite da traição.

Palavras e paisagens - Affonso Romano de Sant'Anna

Há certas palavras pelas quais passo frequentemente
sem lhes conhecer o sentido verdadeiro.

Nunca fui ao dicionário
conhecer as formas polifacéticas de seu ser.

São como pessoas que por mim passam
ou que frequentam nossa paisagem.
Não nos aprofundamos em conhecê-las.
Basta o colorido de suas vestes
e a sonoridade de seus nomes.

Não se pode esgotar o dicionário
ou amar completamente
- tudo o que encontramos.

Iluminando - Affonso Romano de Sant'Anna

Que fulgurante a vida face ao entardecer.
Desfolho seus momentos numa verticalidade absurda.

Os gregos amavam o Sol
e os decadentistas lunares formas de viver.
Projeto uns nos outros
iluminando o escurecer.

A tarde tem sortilégios.

Estou maduro para ela.

Escrevo. Escrevo. Escrevo.
E algo se grava e se esclarece
no ato de escreviver.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poemas para a amiga - 1 - Affonso Romano de Sant'Anna

Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.

Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.

Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.

Por isto é que eu sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém-vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.

As vezes em que eu mais te amei - Affonso Romano de Sant'Anna

As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.

Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava
e em mim te possuía.

De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias.

Contudo, em paz
eu recebia o teu carinho,
compungido o recebia,
tranquilo em meu silêncio
e tão tranquilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.

Eu sei quando te amo - Affonso Romano de Sant'Anna

Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.

Eu sei quando te amo:
é quando eu apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim,
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A exceção e a regra - Bertolt Brecht

Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam
de que o abuso é sempre a regra.

As águas do rio - Bertolt Brecht

Por mais que olhes o rio
que corre pesadamente diante de ti,
nunca verás as mesmas águas.
Nunca regressa a água que passa.
Nem uma só gota
volta à sua nascente.

A bondade - Bertolt Brecht

Não fazer mal a ninguém, nem tampouco, a si mesmo.
Tornar todo mundo feliz e a si mesmo também.
Eis a bondade.

Palavras de uma mulher apaixonada - Bertolt Brecht

Quero partir com o homem que amo.
Não quero pensar no que este amor custará.
Não quero perguntar-me se ajo insensatamente.
Não quero saber tampouco se ele me ama.
Quero partir com o homem que amo.

Entendimento - Bertolt Brecht

Por que brigamos
amor,
se sempre na cama
estamos de acordo?

Poesia do exílio - Bertolt Brecht

Nos tempos sombrios
se cantará também?
Também se cantará
sobre os tempos sombrios.

Nada é impossível de mudar - Bertolt Brecht

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

Uma voz - Bertolt Brecht

De todo o jardim
uma rosa nos agradou.
Como era formosa em seu florescimento!
Em março a plantaram
e não foi em vão.
Ditoso os que tem um jardim
e no jardim uma rosa!

Quando sopram os ventos e cai a neve
e, através da janela, ouvimo-los silvar
que nos pode acontecer?
Fizemos o nosso teto
e o cobrimos de musgo e de palha.
Ditosos os que podem ter um teto
quando se ouve silvar os ventos e cair a neve.

domingo, 22 de agosto de 2010

A poesia - Pablo Neruda

A poesia é sempre um ato de paz.
O poeta nasce da paz como o pão
nasce da farinha.

Quando estive pela primeira vez defronte do oceano - Pablo Neruda

Quando estive pela primeira vez
defronte do oceano me enchi de assombro.
Ali entre dois grandes montes
(o Huique e o Maule) se desatava
a fúria do grande mar.
Não eram somente as imensas ondas
nevadas que se levantavam
a muitos metros sobre nossas cabeças,
mas um estrondo de coração colossal,
a palpitação do universo.

Já não se encantarão meus olhos - Pablo Neruda

Já não se encantarão meus olhos em teus olhos,
já não se achará doce minha dor a teu lado.

Mas por onde eu caminhe levarei teu olhar
e para onde tu fores levarás minha dor.

Fui teu, foste minha. Que mais? Juntos fizemos
um desvio na rota por onde o amor passou.

Fui teu, foste minha. Tu serás de quem te ame,
do que corte em teu horto aquilo que eu plantei.

Eu me vou. Estou triste: mas eu sempre estou triste.
Eu venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

...Desde teu coração diz adeus um menino.
E eu lhe digo adeus.

Para o meu coração basta o teu peito - Pablo Neruda

Para o meu coração basta o teu peito,
para que sejas livre, as minhas asas.
De minha boca chegará até o céu
o que dormido estava em tua alma.

Tu trazes a ilusão de cada dia.
Chegas como o orvalho nas corolas.
Com tua ausência escavas o horizonte.
Eternamente em fuga, irmã das ondas.

Já disse que o teu canto era o do vento
como cantam os mastros e os pinheiros.
És como eles alta e taciturna.
E entristeces de pronto, como uma viagem.

Acolhedora como antiga senda.
Abrigas ecos e vozes nostálgicas.
Desperto e alguma vez emigram, fogem
pássaros dormidos em tua alma.

sábado, 21 de agosto de 2010

Canção para a amiga dormindo - Vinicius de Moraes

Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.

Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e , me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.

Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.
Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
Na minha poesia
De um sono sem fim...

Amor meu, se morro e tu não morres - Pablo neruda

Amor meu, se morro e tu não morres,
amor meu, se morres e não morro,
não demos à dor mais território:
não há extensão como a que vivemos.

Pó no trigo, areia nas areias,
o tempo, a água errante, o vento vago
nos transportou como grão navegante.
Podemos não nos encontrar no tempo.

Esta campina em que nos achamos,
oh pequeno infinito! devolvemos.
Mas este amor, amor, não terminou,

e assim como não teve nascimento
morte não tem, é como um longo rio,
só muda de terras e de lábios.

É bom, amor, sentir-te perto de mim - Pablo Neruda

É bom, amor, sentir-te perto de mim na noite,
invisível em teu sonho, seriamente noturna,
enquanto eu desenrolo minhas preocupações
como se fossem redes confundidas.

Ausente, pelos sonhos teu coração navega,
mas teu corpo assim abandonado respira
buscando-me sem ver-me, completando meu sonho
como uma planta que se duplica na sombra.

Erguida, serás outra que viverá amanhã,
mas das fronteiras perdidas na noite,
deste ser e não ser em que nos encontramos

algo fica acercando-nos na luz da vida
como se o selo da sombra assinalasse
com fogo suas secretas criaturas.

Se não fosse porque tem cor-de-lua teus olhos - Pablo Neruda

Se não fosse porque tem cor-de-lua teus olhos,
de dia com argila, com trabalho, com fogo,
e aprisionada tens a agilidade do ar,
se não fosse porque uma semana és de âmbar.

se não fosse porque és o momento amarelo
em que o outono sobe pelas trepadeiras
e és ainda o pão que a lua fragrante
elabora passeando sua farinha pelo céu,

oh, bem-amada, eu não te amaria!
Em teu abraço eu abraço o que existe,
a areia, o tempo, a árvore da chuva,

e tudo vive para que eu viva:
sem ir tão longe posso ver tudo:
vejo em tua vida todo o vivente.

Amo o pedaço de terra que tu és - Pablo Neruda

Amo o pedaço de terra que tu és,
porque das campinas planetárias
outra estrela não tenho. Tu repetes
a multiplicação do universo.

Teus amplos olhos são a luz que tenho
as constelações derrotadas,
tua pele palpita como os caminhos
que percorre na chuva o meteoro.

De tanta lua foram para mim teus quadris,
de todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
de tanta luz ardente como mel na sombra

teu coração queimado por longos raios rubros,
e assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
pequena e planetária, pomba e geografia.

O amor e seus contratos - Carlos Drummond de Andrade

Tanto nas juras mais vivas
como nos beijos mais longos
em que perduram salivas
de outras paixões ainda ativas,
sopro de angolas e congos,
eu sinto a turva incerteza
(ai, ouro de tredas lavras)
da enovelada surpresa
que põe tanto de estranheza
nos contratos que tu lavras.

Por mais que no teu falar
brilhe a promessa incessante
de um afeto a perdurar
até o mundo acabar
e mesmo depois - diamante
de mil prismas incendidos,
amarga-me o pensamento
de serem pactos fingidos
e nos seus subentendidos
não vi, Amor, valimento.

Experiências de escrituras,
eu tenho. De que me serve?
Após sofridas leituras
de ementas e de rasuras,
no peito a dúvida ferve,
se nos mais doutos cartórios
de Londres, Londrina, Lavras
para assuntos amatórios,
teus itens são ilusórios,
só palavras e palavras.

As nulidades tamanhas
que te invalidam o trato
não sei se provém de manhas
ou de vistas mais estranhas.
Serão talvez teu retrato
gravado em vento ou em sonho
como aéreo documento
que nunca mais recompomho.
São todas - digo tristonho -
feitas de sonho e de vento.

O seu santo nome - Carlos Drummond de Andrade

Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão(e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

O pleno e o vazio - Carlos Drummond de Andrade

Oh se me lembro e quanto.
E se não me lembrasse?
Outra seria minh'alma,
bem diversa minha face.

Oh como esqueço e quanto.
E se não me esquecesse?
Seria homem-espanto,
ambulando sem cabeça.

Oh como esqueço e lembro,
como lembro e esqueço
em correntezas iguais
e simultâneos enlaces.
Mas como posso, no fim,
recompor os meus disfarces?

Que caixa esquisita guarda
em mim sua névoa e cinza,
seu patrimônio de chamas,
enquanto a vida confere
seu limite, a cada hora
é uma hora devida
no balanço da memória
que chora e que ri, partida?

Ternura - Vinicius de Moraes

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora.

Soneto de Carnaval - Vinicius de Moraes

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

Exercício - Clarice Lispector

É curiosa esta experiência de escrever mais leve e para muitos, eu que escrevia "minhas coisas" para poucos. Está sendo agradável a sensação. Aliás, tenho me convivido muito ultimamente e descobri com surpresa que sou suportável, às vezes até agradável de ser. Bem. Nem sempre.

Escrever as entrelinhas - Clarice Lispector

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.

A doce canção - Cecília Meireles

Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve, no chão, criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.

Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem defuntos.
Um arco-íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto.
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
-Todos perdidos de encanto,
só eu morrendo de triste!

Por isso tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não o aumente,
para trazer o universo
de pólo a pólo contente!

Carta - Carlos Drummond de Andrade

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Soneto-Nada ficou em mim - Augusto Frederico Schmidt

Nada ficou em mim do tempo extinto:
As tristezas de outrora, as inquietas esperas,
Fugiram com a alvorada que surgia
Nos plúmbeos céus, escuros, sufocados.

Nada ficou em mim do velho tempo:
As paisagens que eu vi, os seres, tudo
Mergulhou no esquecido mar sem termo,
Onde o silêncio é a lei única e certa.

Bem sei que o Amor de outrora é também sombra.
Bem sei que a luz de um sol que é a própria vida
Não virá nunca mais salvar das trevas

O que se foi e em poeira está mudado.
Bem sei que as vozes que ouço e esse perfume
Que sinto, do passado - é sonho apenas.

Momento - Augusto Frederico Schmidt

Desejo de não ser um herói e nem poeta
Desejo de não ser senão feliz e calmo.
Desejo das volúpias castas e sem sombra
Dos fins de jantar nas casas burguesas.

Desejo manso das moringas de água fresca
Das flores eternas nos vasos verdes.
Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes
Desejo de vestidos de linho azul da esposa amada.

Oh! não as tentaculares investidas para o alto
E o tédio das cidades sacrificadas.
Desejo de integração no cotidiano.

Desejo de passar em silêncio, sem brilho
E desaparecer em Deus - com pouco sofrimento
E com a ternura dos que a vida não maltratou.

Canto do regresso à Pátria - Oswald de Andrade

Minha terra tem palmares
Onde gorgeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

Quando eu morrer - Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paiçandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos.
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Saudade...

Essa que eu hei de amar - Guilherme de Almeida

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia,
será tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer luz e calor a esta alma escura e fria.

E, quando ela passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de acordar no coração, que vela...
E ele irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz... - Tudo isso eu me dizia,

quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,
e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste...

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,
mas ias tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Basta saberes que és feliz - Raul de Leôni Ramos

Basta saberes que és feliz, e então
Já o serás na verdade muito menos;
Na árvore amarga da meditação,
A sombra é triste e os frutos tem venenos.

Se és feliz e o não sabes, tens na mão
O mais bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.

Felicidade...Sombra que só vejo,
Longe do Pensamento e do Desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo.

Nessa tranquilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo...

Medo do infinito - Emiliano Perneta

Sobre a montanha estava em certo dia,
Era quase ao morrer do sol...defronte,
Dos lados, aos meus olhos se estendia
A vastidão do lúgubre horizonte.

Infinito aos meus pés, tremendo, eu via,
Infinito por sobre a minha fronte,
E a Verdade a fugir-me à luz sombria,
À pavorosa luz do sol poente...

Súbito um medo veio-me...esmagado
Até quase à loucura deslumbrado,
Fico, imóvel, suspenso, aflito, aflito...

Que não há medo que enlouqueça tanto,
Como a indizível contorção de espanto,
O extraodinário Medo do infinito!

Não é só te querer... - Emiliano Perneta

Não é só, não é só te querer, porém tudo
Que é teu, ó girassol girando sobre mim,
Com sorrisos onde há seduções de veludo,
Atrações de luar e vozes dum jardim...

Sonho que me faz mal, tortura onde me iludo,
Cruel inquietação, ânsia que não tem fim,
Ó delírio de ver palácios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim!

Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,
Graça do que findou, essência e flor da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...

Quem me dera beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céu,
Desse Ródano Azul, dessa Floresta Negra!

Velho tema - Vicente de Carvalho

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim; mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Sonhei que me esperavas - Olavo Bilac

Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
Saí, ansioso por te ver: corria...
E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
Soube logo o lugar para onde ia.

E tudo me falou, tudo! Escutando
Meus passos, através da ramaria,
Dos despertados pássaros o bando:
"Vai mais depressa! Parabéns" dizia.

Disse o luar: "Espera! que eu te sigo:
Quero também beijar as faces dela!"
E disse o aroma: "Vai, que eu vou contigo!"

E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
"Como és feliz! como és feliz, amigo,
Que de tão perto vais ouvi-la e vê-la!"

Em mim também, que descuidado vistes - Olavo bilac

Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outrora vistes.

Mas amastes, sem dúvida...Portanto,
Meditai nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.

Quem ama inventa as penas em que vive:
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.

Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando.

Arte poética - Adília Lopes

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer.

Para fazer um soneto - Carlos Pena Filho

Para fazer um soneto

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo, Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse;
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão e vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O lamento das coisas - Augusto dos Anjos

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transparência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

Canção - João Cabral de Melo Neto

Demorada demoradamente
nenhuma voz me falou.
Eu vi o espectro do rei
não sei em que porta ele entrou.
Meus sofrimentos cumpridos
que sono os arrebatou?
Mas por detrás da cortina
que gesto meu se apagou?

É mineral o papel - João Cabral de Melo Neto

É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

A educação pela pedra - João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Epígrafe - Mario Quintana

As únicas coisas eternas são as nuvens...

Noturno - Mario Quintana

Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que
[fazem os caminhos...

Em Deus, em ti, de novo...
Tua ternura tão simples...
Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela
[noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto junto
[de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um
[arroio!
Os grilos cantarão na treva...
Fora, na grama fria, devem estar brilhando as gotas
[pequeninas do orvalho.

Da Realidade - Mario Quintana

O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! quanta vez a vida nos revela
Que "a saudade da amada criatura"
É bem melhor do que a presença dela...

É a mesma a ruazinha sossegada - Mario Quintana

É a mesma a ruazinha sossegada.
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - Alegria - Risos
Depois do Circo já ter ido embora!...

Eu faço versos como os saltimbancos - Mario Quintana

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

"Meu Deus1 Mas tu não mudas o programa!"
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
"Que tédio!" o coro dos Amigos clama.

"Mas que vos dar de novo e de imprevisto?"
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
"Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!"

Ideias rosas - Murilo Mendes

Minhas ideias abstratas,
De tanto as tocar, tornaram-se concretas:
São rosas familiares
Que o tempo traz ao alcance da mão,
Rosas que assistem à inauguração de eras novas
No meu pensamento,
No pensamento do mundo em mim e nos outros;
De eras novas, mas ainda assim
Que o tempo conheceu, conhece e conhecerá.
Rosas! Rosas!
Quem me dera que houvesse
Rosas abstratas para mim.

Enigma do amor - Murilo Mendes

Olho-te fixamente para que permaneças em mim.
Toda esta ternura é feita de elementos opostos
Que eu concilio na síntese da poesia.

O conhecimento que tenho de ti
É um dos meus complexos castigos.
Adivinho através do véu que te cobre
O canto de amor sufocado,
O choque ante a palavra divina, a antecipação da morte.
Minha nostalgia do infinito cresce
Na razão direita do afastamento em que estou do teu corpo.

Vem amiga - Jorge de Lima

Vem amiga; darte-ei a tua ceia
e a comida que acaso desejares,
e algum poema que ilumine os ares
menos que a luz malsã dessa candeia.

Aqui terás o peixe desses mares
e o mais gostoso mel de toda a aldeia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia?

Como te chamas vida da outra vida,
espelho noutro espelho transmudado,
lume na minha luz anoitecida?

Serás o dia à noite do outro lado
de meu ser que nas trevas se apagou?
Ou serás qualquer lume que não sou?

Qualquer que seja a chuva - Jorge de Lima

Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

domingo, 15 de agosto de 2010

Há uma orquídea florindo - Albano Martins

Há uma orquídea
florindo - teu
sorriso. Alegre
emanação da terra, folha
do vento, súplice
auréola do sangue, doce
colina e anêmona
do mar.

Cruzeiro Seixas: os dedos filtram a sombra - Albano martins

Entre o real e o sonho,
o sonho do real,
a realidade do sonho.

Entre a luz e a parede
oblíqua, os dedos
filtram a sombra estagnada.

Entre o disforme e o informe,
a forma
solenemente exata.

Abarco todo o horizonte - Albano Martins

Abarco todo o horizonte.
Dentro de mim há só água,
água estagnada, dos charcos
represos da minha mágoa.

Tenho tudo nos meus olhos,
as cores todas, e ponho
um leve acento de angústia
nas margens tristes do sonho.

Dentro de mim só há sombra.
O que possa acontecer
vai rasgando espaços brancos
nas fronteiras do meu ser.

Basta uma flor - Albano Martins

Basta uma flor,
basta uma asa
para saber que a primavera
entrou em nossa casa.

O ritmo do universo - Albano Martins

O ritmo
do universo
cabe,
inteiro,
na pupila
dum verso.

Não forces a tua inspiração - Albano Martins

Não forces a tua inspiração.
Deixa a poesia vir naturalmente
e não obrigues a mentir o coração.

Procura ser espontâneo,
A verdadeira beleza
está no que o homem tem de semelhante
com a natureza.

Meus versos - Albano martins

Meus versos, gritos do vento nas ramagens,
são a minha própria alma angustiada
a refletir imagens
duma lenda, em mim iniciada.

São a ternura destas mãos que escrevem
desatinadas palavras de ansiedade.
Meus versos são a voz da minha voz, a margem
que há entre o sonho e a realidade.

Meus versos
são encontros da sombra com a luz.
São perfis irregulares, talhados
na emoção que os revela e os traduz.

Meus versos
são distâncias várias dum único caminho.
Pássaros que abandonaram
o calor e o âmbito do ninho.

Inscrição - Sofia de Melo Breyner Andresen

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal - Sofia de Melo Breyner Andresen

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.

Soneto à Maneira de Camões - Sofia de Melo Breyner Andresen

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá se não por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Rumor - Eugênio de Andrade

Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.

A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.

Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.

Mas não pode voar.

Green god - Eugênio de Andrade

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar,

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.

Epitáfio - Eugênio de Andrade

Barcos ou não
ardem na tarde

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde!

Os frutos - Eugênio de Andrade

Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.

Somos folhas breves - Eugênio de Andrade

Somos folhas breves onde dormem
aves de silêncio e solidão.
Somos só folhas ou o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Cantas. E fica a vida suspensa. - Eugênio de Andrade

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

Metamorfose - Jorge de Sena

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se refletem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter...
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.

Independência - Jorge de Sena

Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
a às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!

Eu - Florbela Espanca

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada...a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvanecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Segue o teu destino - Fernando Pessoa

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver Só.
grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como o ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Quando meu rosto contemplo - Cecília Meireles

Quando meu rosto contemplo,
o espelho se despedaça:
por ver como passa o tempo
e o meu desgosto não passa.

Amargo campo da vida,
quem te semeou com dureza,
que os que não se matam de ira
morrem de pura tristeza?

Cantiguinha - Cecília Meireles

Brota esta lágrima e cai.
Vem de mim, mas não é minha.
Percebe-se que caminha,
sem que se saiba aonde vai.

Parece angústia espremida
de meu negro coração,
- pelos meus olhos fugida
e quebrada em minha mão.

Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.

Inscrição - Cecília Meireles

Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar.
Por que havemos de ser unicamente humanos,
limitados em chorar?

Não encontro caminhos
fáceis de andar
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.

E por isso levito.
É bom deixar
um pouco de ternura e encanto indiferente
de herança, em cada lugar.

Rastro de flor e estrela,
nuvem e mar.
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:
a sombra é que vai devagar.

Interpretação - Cecília Meireles

As palavras aí estão, uma por uma:
porém minha alma sabe mais.

De muito inverossímil se perfuma
o lábio fatigado de ais.

Falai! que estou distante e distraída,
Com meu tédio sem voz.

Falai! meu mundo é feito de outra vida.
Talvez nós não sejamos nós.

Só quem Amor não venceu o amor conhece - Augusto Frederico Schmidt

Só quem Amor não venceu o amor conhece.
Só quem nas trevas vive e se alimenta
Da esperança de luz que é a luz suprema.
Só quem aspira a um bem e o não alcança,

Sabe o valor do objeto desejado
Cujo prestígio e preço não se altera
E resiste ao destino das terrestres
Coisas que, em se as tocando, se desfazem.

Força é sofrer prisão para ser livre,
E, por Ventura ter, da Desventura
Os passos ter seguido sem descanso.

Força é achar na renúncia a posse plena -
Nos caminhos da Noite a luz da Aurora
E no seio da Morte a própria Vida.

Não quero mais o amor - Augusto Frederico Schmidt

Não quero mais o amor,
Nem mais quero cantar a minha terra.
Me perco neste mundo.
Não quero mais o Brasil
Não quero mais geografia
Nem pitoresco.

Quero é perder-me no mundo
Para fugir do mundo.
As estradas são largas
As estradas se estendem
Me falta é coragem de caminhar.

Sou uma confissão fraca
Sou uma confissão triste
Quem compreenderá meu coração?

O silêncio noturno me embala.
Nem grito. Nem sou.
Não quero me apegar nunca mais
Não quero nunca mais.

Verdade - Carlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

A hora do cansaço - Carlos Drummond de Andrade

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Aspiração - Carlos Drummond de Andrade

Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?

O absoluto amor,
revel à condição de carne e alma.

Ausência - Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Venturosa de sonhar-te - Cecília Meireles

Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

-Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvens sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.

- Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

De longe te hei de amar - Cecília Meireles

De longe te hei de amar,
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.

Para onde é que vão os versos - Cecília Meireles

Para onde é que vão os versos
que às vezes passam por mim
como pássaros libertos?

Deixo-os passar sem captura,
vejo-os seguirem pelo ar
- um outro ar, de outros jardins...

Aonde irão? A que criaturas
se destinam, que os alcançam
para os possuir e amestrar?

De onde vêm? Quem os projeta
como translúcidas setas?
E eu, por que os deixo passar,

como alheias esperanças?

Dizei-me com poucas palavras - Cecília Meireles

Dizei-me com poucas palavras
aquilo que vos atormenta;
que são pressurosas e bravas
as águas do meu pensamento.

O profundo soluço é breve;
a morte é um relâmpago apenas,
Não deixeis qu se alongue a febre
instantânea a da vossa pena.

Dizei com tanta justa eloquência
que haja um círculo, um campo, um halo,
que se veja, em pleno silêncio,
no que dizeis, o que se cala.

Falai de Deus com a clareza - Cecília Meireles

Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza;
com um poder

de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não o entender.

Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.

Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.

Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor

à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo
superior.

Com a voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus

que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.