domingo, 24 de janeiro de 2010

Guimarães Rosa - Manuel Bandeira

Não permita Deus que eu morra
Sem que ainda vote em você;
Sem que, Rosa amigo, toda
Quinta-feira que Deus dê,
Tome chá na Academia
Ao lado de vosmecê,
Rosa dos seus e dos outros,
Rosa da gente e do mundo,
Rosa de intensa poesia,
De fino olor sem segundo:
Rosa do Rio e da rua,
Rosa do sertão profundo!

Auto-retrato - Manuel Bandeira

Provinciano que nunca soube Escolher uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
e em matéria de profissão
Um tísico profissional.

Soneto lV - Ama-me por amor do amor somente... - Manuel Bandeira

 Ama-me por amor do amor somente.
Não digas: "Amo-a pelo seu olhar,
O seu sorriso, o modo de falar
Honesto e brando. Amo-a porque se sente

Minhalma em comunhão constantemente
Com a sua". Porque pode mudar
Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
Do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
De tuas mãos enxuga, pois se em mim
Secar, por teu conforto, esta vontade

De chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me por amor do amor, e assim
Me hás de querer por toda a eternidade.

Soneto l - Amo-te quanto em largo... - Manuel Bandeira

Amo-te  quanto em largo, alto e profundo
Minhalma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não podem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
Ainda mais te amarei depois da morte.

Soneto lll - Parte: não te separas... - Manuel Bandeira

Parte: não te separas! Que jamais
Sairei de tua sombra. Por distante
Que te vás, em meu peito, a cada instante,
Juntos dois corações batem iguais.

Não ficarei mais só. Nem nunca mais
Dona de mim, a mão, quando a levante,
Deixará de sentir o toque amante
Da tua - ao que fugi. Parte: não sais!

Como o vinho, que às uvas donde flui
Deve saber, quanto faço e quanto
Sonho, que assim também todo te inclui

A ti, amor! minha outra vida, pois
Quando oro a Deus, teu nome ele ouve e o pranto
Em meus olhos são lágrimas de dois.

Nova poética - Manuel Bandeira

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa  com a roupa de brim branco muito bem
engomada, e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem
por cento, e as amadas que envelheceram sem maldade.

Neologismo - Manuel Bandeira

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Poema da necessidade - Carlos Drummond de Andrade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.

Confidência do itabirano - Carlos Drummond de Andrade

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem
horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Mãos dadas - Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
[presentes, a vida presente.

Os ombros suportam o mundo - Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam( os delicados ) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Já não sou eu, mas a flor - Cecília Meireles

Já não sou eu, mas a flor
que um dia se tem na mão.
O que me  resta de amor
é de um outro coração.

Ainda que pise este chão,
ando tão alheia a mim
que já não sei aonde vão
os motivos por que vim.

Já não sou eu, mas a voz
que outros não escutarão:
o hino que se eleva após
A dor do Sim e do Não.

Assim foi feito. E aonde for
já não mais me encontrarão.
Perde-se em perfume a flor
um dia aberta na mão.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A voz de Deus - Fernando Pessoa

"Com dia teço a noite,
Com noite escrevo o dia...
Ó Universo, eu sou-te!"
(Sombra de luz na bruma fria,
Que é este archote?
Que mão o tem e o guia?

"Não me chamo o meu nome...
Sou de ti, mundo-não,
Ser mente em ti eu sou-me!"
(De quem esta voz-clarão?
D'O que tem por cognome
O ser da imensidão)

Acontece em Deus - Fernando Pessoa

Entre mim e a vida há uma ponte partida
Só os meus sonhos passam por ela...
Às vezes na aragem vêm de outra margem
Aromas a uma realidade bela;

Mas só sonhando atravesso o brando
Rio e me encontro a viver e a crer...
Se olho bem, vejo-pobre do desejo! -
Partida a ponte do Viver.

E então memoro num choro
Uma vida antiga que nunca tive
Em que era inteira a ponte inteira
E eu podia ir para onde se vive

E então me invade uma saudade
Dum misterioso passado meu
Em que houvesse tido um outro sentido
Que me falta p'ra ser, não sei como, eu.

Ditado pelo poeta no dia da sua morte - Fernando Pessoa

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais ainda.

Eu queria ter o tempo... - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes
Para não pensar em cousa nenhuma,
Para nem me sentir viver,
Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido.

O que nós vemos das cousas... - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

As bolas de sabão que... - Fernando Pessoa(Alberto Caeiro)

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.

Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser .

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.

Todas as teorias, todos os poemas... - Fernando Pessoa(Alberto Caeiro)

Todas as teorias, todos os poemas
Duram mais que esta flor,
Mas isso é como o nevoeiro, que é desagradável e húmido,
E mais que esta flor...
O tamanho ou duração não têm importância nenhuma...
São apenas tamanho e duração...
O que importa é aquilo que dura e tem dimensão
(Se verdadeira dimensão é a realidade)...
Ser real é a cousa mais nobre do mundo.

Medo da morte? - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Medo da morte?
Acordarei de outra maneira,
Talvez corpo, talvez continuidade, talvez renovado,
Mas acordarei.
Se os átomos não dormem, por que hei-de ser eu só a dormir?

E há poetas que são artistas... - Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro)

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem construi um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...

Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Trecho de "Os sertões" - Euclides da Cunha

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas-
êmulas das bruxas das igrejas-
revestidas da capona preta
lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição;
as solteiras, termo que nos sertóes
tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas,
soltas na gandaíce sem freios;
as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas;
e honestas mães de famílias;
nivelando-se pelas mesmas rezas.
Faces murchas de velhas- esgrouvinhados viragos
em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece;
-rostos austeros de matronas simples;
fisionomias ingênuas de raparigas crédulas,
misturavam-se em conjunto estranho.
Todas as idades, todos os tipos, todas as cores...
Grenhas maltradas de crioulas retintas;
cabelos corredios e duros, de caboclas;
trunfas escandalosas, de africanas;
madeixas castanhas e louras de brancas legítimas,
embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo,
sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre.
Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita,
deselegantes e escorridos,
não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa:
um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor,
atenuando a monotonia das vestes encardidas
quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas,
deixando expostos os peitos cobertos de rosários,
de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos,
de dentes de animais, de bentinhos,
ou de nôminas encerrando cartas santas,
únicos atavios que perdoava
a ascese exigente do evangelizador.

Floral - Affonso Romano de Sant'Anna

É isto. É primavera.
Estou feliz, em febre.
Outros
politizam suas dores.
Eu
me polenizo
ou polemizo
- com as flores.

Fazer versos - Affonso Romano de Sant'Anna

Muitos nunca entenderão
o fazer versos. Acham um passatempo
e insensatez perversa.
Contemplo-os à noite, do terraço
que dá para a solidão de seus quartos.
Dormem todos. Mas há luzes acesas.
Devem ser poetas que desconheço
e me desconhecem, e alta noite reconstroem,
mudos, um diálogo de muitos,
como se nunca fossem morrer.

Os outros dormem. Dormem
imaginando, ás vezes, como o artista há de ser.
O artista, apenas, arde o ser.

O leitor e a poesia - Affonso Romano de Sant'Anna

Poesia
não é o que o autor nomeia,
é o que o leitor incendeia.

Não é o que o autor pavoneia,
é o que o leitor colhe á colmeia.

Não é ouro na veia,
é o que vem na bateia.

Poesia
não é o que o autor dá na ceia,
mas o que o leitor banqueteia.

Poema-memória 4 - Affonso Romano de Sant'Anna

Memória, não eras - és.
Não te revivo - vives
pelas minhas mãos e meus sentidos.
És presente, eu te tateio
e, mais que isso, te recrio.
Estás nos meus domínios - te apascento.
Ouço a flauta de meu pai
que aos domingos...

Esta flauta, sabei-o,
não tem chaves nos dedos,
nem no tempo que é o estojo,
flauta e chave abrem-se de mim.

Não é a lembrança, repito,
é a flauta de meu pai
-tocando em mim.

Canto e palavra 3 - Affonso Romano de Sant'Anna

Quereis saber
como eu me faço
ou de mim como eu me quero?
é fácil:
cultivo em mim os meus contrários
e a síntese dos termos cultivo,
sabendo que o canto é quando
e a palavra é onde,
e que ela o ultrapassa
mais que o complementa.
E certo que o homem
embora sinta e pense,
cante e fale
seus conflitos nunca vence,
é que eu tranquilo me exponho,
em canto me componho:
pois um homem somente se organiza
e completo se apresenta
quando com seus contrários se acrescenta.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Nuvens - Luís Quintais

Nuvens
A metafísica será talvez
uma indisposição que se quer passageira.

Porém, eu continuo a inquietar-me
com as nuvens que são arrastadas,

violentamente arrastadas, na direção sudeste,
filtrando a luz do sol em obssessiva correria.

Certas coisas - Affonso Romano de Sant'Anna

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Muitos poemas perdi
pensando: "depois escrevo",
"agora estou almoçando"
ou "consertando a porta".
Assim, adiei-perdi
o melhor? de mim.

Certas coisas
não se podem deixar para depois,
e nisto incluo: frutos no galho,
mudanças sociais,
certas coxas e bocas
e esta manhã que se esvai.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

O amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia.
O desejo sabe o que quer,
detesta burocracia.

Feito depois, o amor
é murcha lembrança
do que, não sendo, seria.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Como o amor e as pessoas,
não se pode recuperar
- a poesia.

Musicalidades - Affonso Romano de Sant'Anna

E eu que pensava, fosse o amor
um calmo oboé de Mozart.
Sim, também o é.
Mas súbito, pancadas do destino
arrebentando as portas se ouvem.
É o amor, e é Beethoven.

Estranhamento - Affonso Romano de Sant'Anna

Estranho
que depois dos 40
esteja aprendendo
o que é o amor.
Que tolo então eu era
achando
que já sabia tudo de cor
pensando
que nesta matéria
não sentiria mais dor
pois dor e alegria me abalam
e humilde
- reaprendo quem sou.

Talvez pensasse
já ter resolvido a questão
quando na adolescência
morto de amor
vivi a ressurreição.
Mas o amor revém
com seu mistério sobre um homem
que em breve
será velho. Revém
e me humilha. Me humilha
e glorifica
me deixa doce e perplexo
enquanto minha carne
se estremece
- e maravilha.

A maravilha do mundo - Affonso Romano de Sant'Anna

Quem disse
que são sete as maravilhas do mundo?
Quem disse
quais são? onde estão?
E se as maravilhas do mundo
forem oito
ou vinte e sete
ou incontáveis
como as que encontro sempre no seu corpo?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Extravio - Alex Varella

Eu caibo inteiro na minha linguagem
assim como não caibo em minha imagem.

Nada me importa o mundo mudo,
se é lógico, se é lindo ou se é de fato.

No extravio de viagem que é a minha linguagem
eu não falo do ser: eu faço ser.

Os justos - Jorge Luís Borges

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas que se ignoram, estão salvando o mundo.

Carta - Carlos Drummond de Andrade

Há muito tempo, sim, que não te escrevo
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençõe", e a noite abria em sonho.
É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Soneto da porta - Ledo Ivo

Quem bate à minha porta não me busca.
Procura sempre aquele que não sou
e, vulto imóvel atrás de qualquer muro,
é meu sósia ou meu clone, em mim oculto.

Que saiba quem me busca e não me encontra:
sou aquele que está além de mim,
sombra que bebe o sol, angra e laguna
unidos na quimera do horizonte.

Sempre andei me buscando e não me achei:
E ao por-do-sol, enquanto espero a vinda
da luz perdida de uma estrela morta,

sinto saudades do que nunca fui,
do que deixei de ser, do que sonhei
e se escondeu de mim atrás da porta.

Mote - Não sei se me engana...- Luís de Camões

Não sei se me engana Helena,
Se Maria, se Joana;
Não sei qual delas me engana.

Uma diz que me quer bem,
Outra jura que mo quere;
Mas em jura de mulher
Quem crerá, se elas não crêem?
Não posso, não, crer a Helena,
A Maria, nem Joana:
Mas não sei qual mais me engana.

Uma faz-me juramentos
Que só meu amor estima;
A outra diz que se fina;
Joana, que bebe os ventos.
Se cuido que mente Helena,
Também mentirá Joana;
Mas quem mente não me engana.

Canção do amor imprevisto - Mario Quintana

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
[nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

Canção para uma valsa lenta - Mario Quintana

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance,
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida...passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...

Canção do dia de sempre - Mario Quintana

Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência...esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Ao desconcerto do mundo - Luís de Camões

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
Anda o mundo concertado.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O transe poético... - Adélia Prado

"O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você.Ela te observa e te ama. Isto é sagrado.É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta."

Frases - Adélia Prado

"O que a memória ama, fica eterno.Te amo com a memória, imperecível".

"Não tenho tempo algum, porque ser feliz me consome."

"O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver.
Porque sonho não morre.

Eu quero uma licença de dormir... - Adélia Prado

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Com licença poética - Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me calam,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não,
creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Nunca fui como todos... - Florbela Espanca

Nunca fui como todos
Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento.
Não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só...

Lição de arquitetura -para Oscar Niemeyer - Ferreira Gullar

No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar  depositou
para sempre
uma ave uma flor
(ele não fez de pedra
nossas casas:
faz de asa).

No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde
uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida.

(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular).

Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com a matéria dura:
o ferro o cimento a fome
de humana arquitetura.

Nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do ovo.
-Oscar nos ensina
que a beleza é leve. 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Poemas para a amiga(Fragmento 3) - Affonso Romano de Sant'Anna

É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.

E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.

Poemas para a amiga(Fragmento 1) - Affonso Romano de Sant'Anna

Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim  dispersa me ouvias.

Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.

Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.

ARS - Affonso Romano de Sant'Anna

A
Arte
é luz
é sina

A
Arte
aluzcina

Quero
aluzinarte

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Chegando em casa - Affonso Romano de Sant'Anna

Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia :

-hoje, 22 de agosto de 1994
Meu marido perdeu, deste terraço :

Mais um pôr do sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.

A primeira vez que entendi - Affonso Romano de Sant'Anna

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a olhar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

Encomenda - Cecília Meireles

Desejo uma fotografia
como esta -o senhor vê? -como esta :
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixa esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não...Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Poemas para a amiga (Fragmento 2) - Affonso Romano de Sant'Anna

Eu sei quando te amo :
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.

Eu sei quando te amo :
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

Errando no museu Picasso - Affonso Romano de Sant'Anna

Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.
Mas quando erra,
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima,
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com banderilhas na carne.

Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.
Ele erra,
mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.

Conjugação - Affonso Romano de Sant'Anna

Eu falo
tu ouves
ele cala.

Eu procuro
tu indagas
ele esconde.

Eu planto
tu adubas
ele colhe.

Eu ajunto
tu conservas
ele rouba.

Eu defendo
tu combates
ele entrega.

Eu canto
tu calas
ele vaia.

eu escrevo
tu me lês
ele apaga.

Letra: Ferida exposta ao tempo - Affonso Romano de Sant'Anna

É forçoso dizer que me faz falta
o poema que existe e nunca li,
como se alhures
brotassem coisas que não vi
e que distantes,
carentes,
dependessem de mim.
Algo como se o intocado fosse a sinfonia
inacabada, mais: rasgada
como o quadro nunca esboçado, perdido
na abatida mão do artista.

O ausente
é uma planta
que na distância se arvora
e é tão presente
quanto o passado que aflora.

E a literatura, mais que avenida ou praça
por onde cavalga a glória, é um monumento,
sim, de dúbia estória: granito e rima,
alegoria ao vento, lugar onde carentes
e arrogantes
cravamos nosso nome de turista :
- estive aqui, desamado,
riscando a pedra e o tempo
expondo meu sangue e nome
com o coraçâo trespassado.

Aqui está minha vida - Cecília Meireles

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Canção de alta noite - Cecília Meireles

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.
Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.
Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.
Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar...-enquanto consente
Deus que seja a noite andada.
Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Amor é chama que mata... - Mário de Sá-Carneiro

Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão.
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.
Madeixa que se desata
Denominando-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvaece.

A lição de poesia - João cabral de Melo Neto

Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
Nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

Ex/plicação - Haroldo de Campos

não há um
sentido único
num poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco
(tente outra
vez)
sem saída.

Ferida - Augusto de Campos

fer
ida
sem
ferida
tudo
começa
de novo
a cor
cora
a flor
o ir
vai
o rir
rói
o amor
mói
o céu
cai
a dor
dói

Cântico VI - Tu tens um medo: - Cecília Meireles

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete.
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino,
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa,
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.


Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
...E tudo o que era efêmero
se desfez,
E ficaste só tu, que é eterno.

Cântico II- Não sejas o de hoje... - Cecília Meireles

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Silêncio amoroso 2 - Affonso Romano de Sant'Anna

Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo,
pode construir. É um modo
denso/tenso
-de coexistir.
Calar, às vezes,
é fina forma de amor.

Reflexivo - Affonso Romano de Sant'Anna

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que eu adiei, adeus-se.

Preciso, para - Marina Colasanti

Preciso que um barco atravesse o mar
lá longe
para sair dessa cadeira
para esquecer esse computador
e ter olhos de sal
boca de peixe
e o vento frio batendo nas escamas.
Preciso que uma proa atravesse a carne
cá dentro
para andar sobre as águas
deitar nas ilhas e
olhar de longe esse prédio
essa sala
essa mulher sentada diante do computador
que bebe a branca luz eletrônica
e pensa no mar.

Passando dos cinquenta - Marina Colasanti

Meu pescoço se enruga.
Imagino que seja
de mover a cabeça
para observar a vida.
E se enrugam as mãos
cansadas dos seus gestos.
E as pálpebras
apertadas no sol.
Só da boca não sei
o sentido das rugas
se dos sorrisos tantos
ou de trancar os dentes
sobre caladas coisas.

Os amantes - Affonso Romano de Sant'Anna

Os amantes, em geral,
passam noites inteiras
inquietos e ansiosos
-também eu.

Os amantes, em geral,
choram sobre as cartas,
dão telefonemas aflitos
-como eu.

Os amantes, em geral,
passam horas figurando
o corpo amado,
curvas, gestos, preferências
- como eu

Os amantes, em geral,
são patetas, maus estetas,
fazem versos ruins
e se chamam poetas
-como eu.

Despedidas - Affonso Romano de Sant'Anna

Começo a olhar as coisas como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

Arte-final - Affonso Romano de Sant'Anna

Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.

Ouvir estrelas - Olavo Bilac

"Ora(direis)ouvir estrelas!Certo
Perdeste o senso!" E eu voz direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cinti-la - E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Remorso - Olavo Bilac

Às vezes, uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando.
Cismo e padeço,neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.
Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!
Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.
Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!

Deixa o olhar do mundo - Olavo Bilac

Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?
Basta de enganos!
mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
invejosos, apontem-me com o dedo.
Olha: não posso mais!
Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo...
Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E fatigado de calar teu nome,
quase o revelo no final de um verso.

Saudade - Guilherme de Almeida

Só.
Para além da janela,
nem uma nuvem, nem uma folha amarela
manchando o dia de ouro em pó...
Mas, aqui dentro, quanta bruma,
quanta folha caindo, uma por uma,
dentro da vida de quem vive só!

Só - palavra fingida,
palavra inútil, pois quem sente
saudade, nunca está sozinho; e a gente
tem saudade de tudo nesta vida...
De tudo! De uma espera
por uma tarde azul de primavera;
de um silêncio;da música de um pé
cantando pela escada;
de um véu erguido; de uma boca abandonada;
de um divã; de um adeus; de uma lágrima até!

No entanto, no momento,
tudo isso passa
na asa do vento,
como um simples novelo de fumaça...
E é só depois de velho, uma tarde esquecida,
que a gente se surpreende e resmungar:
"Foi tudo o que vivi de toda a minha vida!"
E começa a chorar...

Meu povo, meu abismo - Ferreira Gullar

Meu povo é meu abismo.
Nele me perco:
a sua tanta dor me deixa
surdo e cego.

Meu povo é meu castigo
meu flagelo:
seu desamparo,
meu erro.

Meu povo é meu destino
meu futuro:
se ele não vira em mim
veneno ou canto-
apenas morro.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Pastor Amoroso - VI - Fernando Pessoa

Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela.
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la,
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só pensar ela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.

Uma carta extraviada - Guilherme de Almeida

Minha única
Sim.É bem verdade. Faz
"tanto tempo, meu Deus, que não escrevo! Mas,
"procure compreender meu silêncio!
"É o meu único bem: é tudo o que
"ainda acho em mim de bom para dar a você.
"O meu silêncio! Pense nele, como eu penso!
"De tudo isto que sou, e que a vida me deu,
"só o meu silêncio é realmente 'meu'.
"Não é o olhar que dispara e vai partir-se contra
"qualquer primeiro obstáculo que encontra...

"Nao é a frase que foge e esvoaça, tonta,
"e vai por em qualquer ouvido o seu gorjeio,
"como uma ave exilada em ninho alheio...
"Não é o gesto que sobe e que desenha no ar
"a alma da gente ante qualquer olhar...
"Não é o beijo que bóia, fútil, sobre o nível
"de qualquer pele, como flor na água sensível...
"Não! É o meu silêncio! O 'meu' silêncio...
"Ah!pense um pouco nele, como eu penso!
"É o olhar que eu não soltei das pálpebras:aquele
"que era da alma - e minha alma precisava dele...
"É a palavra que não feriu nenhum ouvido,
"porque era cada sílaba o batido
"de um pobre coração em sobressalto:
"e o coração não sabe falar alto...
"É o gesto que o meu corpo - único sonho seu -
"sonhou:e, por ser sonho, nunca'aconteceu'...
"É o beijo que ficou, inerte e trêmulo, entre
"os meus lábios, erguendo um gládio ardente,
"proibitivo como um Anjo à frente
"de um Paraíso Perdido...
O 'meu' silêncio!
"Ah! pense um pouco nele, como eu penso!"


[Essa é a carta extraviada:a que o Acaso divino
não deixou que chegasse ao seu destino,
para que nunca, nunca se perdesse,
quebrando o encanto bom de um silêncio como esse].

Ano- Novo - Ferreira Gullar

Meia-noite.Fim
de um ano, início
de outro.Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio

da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

Barulho - Ferreira Gullar

Todo poema é feito de ar
apenas:
A mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.

O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.

Poeminha amoroso - Cora Coralina

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

Assim eu vejo a vida - Cora Coralina

A vida tem duas faces:
positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado.
Saber viver é a grande sabedoria.
Que eu possa dignificar
minha condição de mulher,
aceitar suas limitações,
e me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes,
aceitei contradições,
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo.
Aprendi a viver.

Saber viver - Cora Coralina

Não sei... se a vida é curta...
Não sei...
Não sei... se a vida é curta
ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que acaricia,
desejo que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo.
É o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira, pura...
enquanto durar.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Meus oito anos - Casimiro de Abreu

Oh!que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor,que sonhos,que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado
A vida - um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia,
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus
- Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava as Aves-Marias,
Achava o céu sempre lindo
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A castanheira - Guilherme Pamplona Puget

Se abatem sobre a terra os temporais
Em dias de fúria, fúria de jornada inteira
Caem as frágeis, as árvores banais...
Incólume, das mais fortes resta a castanheira.

Esta filha da terra de galhos colossais
De um verde nobre, orgulhosa e altaneira
Resiste sem pavor a destroçantes vendavais
Tranquila ao que pasma a mata inteira.

E, no entanto,é tão dócil esta gigante
Que açoitada, apenas frutos no chão despeja
Afetando meu coração poeta,poeta amante...

Que assim se comporte a mulher que se deseja
Imitando a árvore seja, forte e vibrante...
Mas delicada e doce como a castanheira seja

Velho tema - Vicente de Carvalho

Só a leve esperança em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca, nunca a pomos onde nós estamos.

O que é - Simpatia a uma menina - Casimiro se Abreu

Simpatia - é um sentimento
Que nasce num só momento
Sincero no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.

Simpatia são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.

São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.

Simpatia - meu anjinho
É o canto de passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'agosto
É o que me inspira teu rosto
- Simpatia - é quase amor!

Loucos e Santos - Oscar Wilde

Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

Prece - Fernando Pessoa

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és Tu e a lua és Tu e o vento és Tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és Tu também. Onde nada está Tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra,ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu.Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de Ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Amor e seu tempo - Carlos Drummond de Andrade

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e a mais reivosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

-É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe.

Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada,ouvida. Amor começa tarde.

Quero - Carlos Drummond de Andrade

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de cinco em cinco minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte
como sabê-lo?

Que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a emoção
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional
amor
feito som
vibração espacial
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Desejos - Carlos Drummond de Andrade

Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica do Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música do Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho.
Sarar de resfriado
Escrever um poema de amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender uma nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Por-do-sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Não deixe o amor passar - Carlos Drummond de Andrade

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer
seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa
mais importante da sua vida.

Se os olhares se cruzarem e neste momento,
houver o mesmo brilho intenso entre eles,
fique alerta: pode ser a pessoa que você está
esperando desde o dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo
for apaixonante,e os olhos se encherem
d'água neste momento, perceba
existe algo mágico entre vocês.

Se o primeiro e o último pensamento do seu dia
for essa pessoa, se a vontade de ficar
juntos chegar a apertar o coração, agradeça:
Algo do céu te mandou
um presente divino: o Amor

Se um dia tiverem que pedir perdão um
ao outro por algum motivo e, em troca,
receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos
e os gestos valerem mais que mil palavras,
entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste,
se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa
sofrer o seu sofrimento, chorar as suas
lágrimas e enxugá-las com ternura, que
coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida.

Se você conseguir, em pensamento, sentir
o cheiro da pessoa como
se ela estivesse ali do seu lado...

Se você achar a pessoa maravilhosamente linda,
mesmo ela estando de pijamas velhos,
chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue trabalhar o dia todo,
ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...

Se você não consegue imaginar, de maneira
nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...

Se você tiver a certeza que vai ver a outra
envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção
que vai continuar sendo louco por ela...

Se você preferir fechar os olhos, antes de ver
a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes
na vida poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.

Às vezes encontram e, por não prestarem atenção
nesses sinais, deixam o amor passar,
sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

É o livre arbítrio.Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
cego para a melhor coisa da vida: o Amor!!

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ontem... - Euclides da Cunha

Ontem - quando, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão - louca - suprema
E no teu lábio, essa rósea algema,
A minha vida - gélida - prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
Como engastar tua alma num poema.
E eu não chorava enquanto tu te rias...

Hoje, que vivo desse amor ansioso
E, és minha - és minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste sendo tão ditoso!

E tremo e choro - pressentindo - forte,
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida - que é a morte...

Comparação - Euclides da Cunha

"Eu sou fraca e pequena..." Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,

Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.

Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:

Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela...
E no entretanto - é um mundo!

Página vazia - Euclides da Cunha

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse,
Perguntaria: "Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?

Poema-postal (dedicatória em 1905) - Euclides da Cunha

Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que , nos mesmos negativos;
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face.

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos...Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;

Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - deste grupo bem no meio -

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.

João Boa-Morte,cabra marcado pra morrer - Ferreira Gullar

Vou contar para vocês
um caso que sucedeu
na Paraíba do Norte
com um homem que se chamava
Pedro João Boa-Morte,
lavrador de Chapadinha:
talvez tenha morte boa
porque vida ele não tinha.

Sucedeu na Paraíba
mas é uma história banal
em todo aquele Nordeste
Podia ser em Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra da peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida não.

Morava João nas terras
de um coronel muito rico.
Tinha mulher e seis filhos,
Um cão que se chamava "Chico",
um facão de cortar mato,
um chapéu e um tico-tico.

Trabalhava noite e dia
nas terras do fazendeiro.
Mal dormia, mal comia
mal recebia dinheiro;
se recebia não dava
pra acender o candeeiro.
João não sabia como
fugir desse cativeiro.

Olhava pras seis crianças
de olhos cavados de fome,
já consumindo a infância
na dura faina da roça.
Sentia um nó na garganta.
Quando uma delas almoça,
as outras não; a que janta,
no outro dia não almoça.

Olhava pra Maria,
sua mulher, que a tristeza
na luta de todo dia
tão depressa envelheceu.
Perdera toda a alegria,
perdera toda a beleza
e era tão bela no dia
em que João a conheceu!

Que diabo tem nesta terra,
neste Nordeste maldito,
que mata como uma guerra
tudo o que é bom e bonito?
Assim João perguntava
para si mesmo, e lembrava
que a tal guerra não matava
o Coronel Benedito!
(...)

Deus nos dá... - João Guimarães rosa

Deus nos dá pessoas e coisas,
para aprendermos a alegria...
Depois, retoma coisas e pessoas
para ver se já somos capazes da alegria
sozinhos...
Essa... a alegria que Ele quer.

Mãe, o que é o mar... - João Guimarâes Rosa

"Mãe, o que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. Pois,Mãe, então mar é o que a gente tem saudade?"

Noturno - Ariano Suassuna

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha.
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos...

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, porque te ligo à morte?

Consciência Cósmica pg.146 - João Guimarães Rosa

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do redemoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

Amar - Florbela Espanca

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui...além...
Mais este e aquele, o outro e a toda gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente...
Prender ou desprender ? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
È preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que eu saiba me perder...pra me encontrar...

Súplica - Miguel Torga

Agora que o silêncio  é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Ausência - João Guimarães Rosa

Na almofada branca
as sandálias sonham
com a seda dos teus pés...

Partiste...
Mas a alegria ainda ficou no quarto,
talvez no ninho morno, calcado por teu corpo
no leito desfeito...

Entardece...
Esfuziante e verde,
um beija-flor entrou pela janela,
(pensei que a tua boca ainda estivesse aqui...)

Do frasco aberto,
vestidas de vespas,
voam violetas...

E na almofada de seda
beijo as sandálias brancas,
vazias dos teus pés.

Quando escrevo... - João Guimarães Rosa

" Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um lèxico só não é suficiente.Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como  a alma  de um homem. Na superfície  são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens."

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Nova canção do exílio - Ferreira Gullar

Minha amada tem palmeiras
onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos.
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim.


Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata.
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos.

Poema - Ferreira Gullar

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos-da-Ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó-
dos-Andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.

Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Um instante - Ferreira Gullar

Aqui me tenho
Como não me
conheço
nem me
quis
sem começo
nem fim
aqui me
tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um
bicho
transparente.

Um instante - Ferreira Gullar

Metade - Ferreira Gullar

Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste...

Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.

Porque a metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.

E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.

Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.

Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.

Porque metade de mim é amor,
e a outra...
também.