Inteira, ela espreitava a terra inteira. Seu luar frio acariciava as pedras, as folhas, as águas, invadindo frestas até a alma. Sua claridade lapidava as trevas com perguntas e labirintos. Seu silêncio, de pouco em pouco, recordava conversas sobre perdidas palavras, gastos gestos, antigos amores. Inteira, no escuro do céu, ela despertava, com anil e sossego, mágoas inteiras. E nessa noite eles dormiam por terra, entre trastes, frio e mais abandono. Foi no coração do escuro que os soluços acordaram a mãe de sua madorna. Ela trancou os ouvidos com as mãos e desespero.
Tentou retornar o sono apertando os olhos e alucinada. Ela bem conhecia a origem das lágrimas dos meninos. Era a Fome, hóspede previsível. Entrava sem chaves, sem respeitar trancas. Surgia sem consentimento, negando trégua ao repouso.
Mas na casa só havia o vazio e o resto. A Fome, há muito, andava corroendo tudo. Devorou o relógio do pai e com ele engoliu o tempo; comeu a esperança junto com a medalha de ouro da mãe; mastigou o rádio de pilha e assim trancou a música. Isso, depois de mastigar as camas, as cadeiras, as mesas. o armário com todos os seus pertences. E nada reinava absoluto por todos os cantos dos cômodos. Era maio, e o frio da noite aquecia mais e mais a Fome. Na casa, só havia o vazio e o resto - nem mais tempo, esperança ou ruído. Mesmo as moscas já não mais zumbiam sua música ou pousavam nos lábios ressecados dos filhos, quando adormecidos. No fogão, as cinzas do que antes fora fogo acusavam a ausência de tudo.
Quanto menos se possui, com mais frequência a Fome nos visita - a mãe suspeitava.
A força dos braços do pai somada aos dias inteiros de trabalho não mais afugentavam a insistência da Fome. Era preciso ter mais horas e maior resistência para estancar, ainda que temporariamente, as demandas de sua presença.
A mãe, há muito, não abria o rosto em sorriso e as mãos para os carinhos. E se na noite faltava sono, o sonho era preenchido com memórias pesares. A Fome devorava também os amores, lastimava a mulher.
A falta crescia demasiadamente na casa. Algum murmúrio só retalhava o vazio em raros momentos.
Escutava-se um lamento, uma queixa, um soluço. A fome vinha degustando as palavras, frases, orações. Comia letra por letra, deixando a mudez em todas as bocas.
As conversas se teciam por meio de olhares cúmplices, corpos reprimidos, mãos estendidas. Mas o resto era tão pouco que não necessitava muitas palavras para nomeá-lo.
O pai se despediu um dia.
Levou o par de alianças para dispor e negociar com a Fome um pouco mais de vida.
Ficou no dedo da mão esquerda da mulher uma sombra desbotada de partida.
Ela contemplava o sinal com ilusão de reencontro. Sem preces, a mãe reconhecia os desígnios do eterno.
E tudo suportava, clarividente, para afastar dos filhos a presença da Fome e suas ameaças sem fronteiras.
A mulher sabia da necessidade de bem atender às exigências da Fome. Se não saciamos seu desejo, ela nos mata sem piedade, com golpe lento, pensava.
Chega mansa, assaltando o orgulho de ser humano. Depois rói o estômago para em seguida fazer tremer a pouca carne do corpo.
Embaça o olhar, tornando mais turvo o mundo, para então escurecer o pensamento. Assim, a vida se faz definitivamente noite, sem mais sono ou sonho. Porque a Fome é forte e mata.
Todos, quando pressentem sua chegada, buscam uma maneira de alimentá-la, sem demora.
Perseguem trabalho, procuram campos, abandonam famílias, ganham calúnias, merecem suspeitas, assaltam, violentam. Pelo pavor da Fome devorar vida, perde-se o limite dos muros.
A Fome não fala, mas exige pela dor - suspeitava a mãe.
Todos desconhecem o tamanho de sua boca e a medida de seus braços. Ela é capaz de abraçar uma nação inteira de homens em um mesmo tempo. Só se vê a Fome quando nos espelhos a apreciamos vestida em nosso corpo, transbordando loucura em nosso olhar. Ela chega impaciente. Orações, promessas, novenas - nada a Fome atende, respeita ou perdoa. E a Fome come por muitos. Com o devorado ela arma grandes banquetes para os seus senhores, generosamente. Em porcelana, linho, cristal, ela serve o resultado do vazio deixado no estômago dos oprimidos. Ela está sempre pronta para servir à mesa de seus donos, onde nada falta.
Por comerem tanto e sempre, os patronos da Fome nunca experimentaram na carne a crueldade de sua aliada.
Eles sabem de sua existência e seus lucros, sem jamais encarná-la.
Quando a tarde recolhia o voo dos pássaros entre galhos e ninhos e a lua crescia nas bordas das montanhas, a felicidade invadia provisoriamente o espírito da mãe. A fantasia era um acalanto amaciando o fim do poente. Quem sabe o marido chegaria abraçando os filhos depois de ter travado uma aliança com a Fome?
Mas naquela noite de choro - pois na casa só havia o vazio e o resto - nasceu no coração aflito da mãe um caminho.
Ela buscou a bacia encostada no canto da cozinha e deixou no meio do terreiro. Encheu o lago com água clara e madrugada.
Salgou com lágrimas aquele mar de tristeza.
Pescou a lua cheia do céu para dentro das ondas. Chamou pelos filhos e se assentaram na beira do oceano ou nas margens do prato. Com voz rouca e branda, como se evitando acordar a mentira, a mãe declamou para os filhos a sua tristeza:
- Não sei por onde viaja nosso pai.
Partiu para dispor das alianças e dilatar nossa vida. Alimentar a Fome era o seu querer, antes que ela nos golpeasse a todos.
Não sei se ele dorme cansado, coberto por esta noite branca, ou quem sabe ele vela, entre marquise e sarjeta, uma saudade como a nossa, enxaguada de luar.
A ausência do pai trouxe mais medo da Fome na alma dos meninos. A mãe, agora senhora dos milagres, cortou em quatro partes a lua das águas. E antes que a madrugada devorasse a noite, eles comeram a lua no café da manhã. As lágrimas da mãe caíram como pedras e anéis nas águas do lago, acariciando com ondas a falsa lua e o resto de maio.
A beleza engana, ela sabia, ao vislumbrar três rostos de anjos boiando dentro das águas.
O dia desbotou a lua no fundo do prato, lentamente. Nas águas, no que antes fora mar, a mãe efregava um resto de roupa, entre espumas, dedos e sombra de aliança, como se sovando a massa para o pão da ceia.
Os meninos, naquela hora, estariam vencendo as ruas, de porta em porta, de esquina em esquina, de lixo em lixo, de não em não, buscando armas para matar a Fome.
Queirós, Bartolomeu Campos de
De não em não/ Bartolomeu Campos de Queirós;
2ª edição - São Paulo: Global, 2009